sábado, 2 de março de 2013

Eis o homem.



            O homem é animal por sua estrutura biológica, e como ser consciente reflexivo vive na própria subjetividade manifestações espirituais inéditas na história evolutiva da vida. Como animal, é finito, portador de impulsos instintivos; como consciência reflexiva, é fascinado pela idéia de eternidade e submete seu devir biopsicossocial a valores éticos que transcendem o puramente biológico. Por isso o ser humano é capaz de fazer cultura, construindo uma ordem caracteristicamente humana que não é inata, mas criada através da comunicação e cooperação entre indivíduos em sociedade!
Freud lançou alguma luz sobre a estrutura subjetiva do homem, criando um modelo de interação dos estratos psíquicos definidos pela Psicanálise como Ego, Inconsciente e Superego. Estes elementos constitutivos da psique humana se desenvolvem no processo de individuação eleborado paralelamente ao de socialização. Ganhar intimidade com a trama complexa das relações entre os vários estratos da psique é a base do autoconhecimento. A sabedoria consiste em saber utilizar com prudência a razão, o sentimento e a vontade, pilastras do comportamento pessoal, num esforço criativo de integração do indivíduo no seu contexto psicossocial e ambiental. Neste processo as escolhas envolvem o bom uso do livre arbítrio que exige conhecimento e controle emocional.
A própria condição humana[1] é problemática. Muito trabalho interior há que ser feito pelo homem para a aceitação criativa das antinomias existenciais. Elas são contradições emergentes com a própria consciência, caracterizadas pelo contraste vivenciado entre a finitude biológica e o desejo de eternidade; entre a impotência do ser contingente e o ilimitado anelo de poder; entre a restrição intelectual e observacional do homem, e sua ambição de saber. A superação destas antinomias resulta de um esforço pessoal que compromete o vir a ser individual de acordo com o potencial intelectual, intuitivo, afetivo e volitivo de cada homem. A dificuldade é tal e tão complexa que muitos recorrem a uma ajuda mística para conviver com as próprias contradições.
            Centrada na consumação de valores, a existência é feita de decisões responsáveis. Mas é preciso viver integralmente estes valores, numa experiência pessoal totalizante, para realizar plenamente a grandeza da “existência”. É isto que garante a autenticidade do comportamento humano, distinguindo a experiência existêncial coerente e comprometida, da pura exibição de aparências. Neste esforço para ser verdadeiro urge harmonizar o pensar e o sentir muitas vezes conflitantes, de forma a preservar os valores que dignificam a existência.
Sob a pressão da necessidade de autorealização, durante sua existência o homem terá que fechar a "gestalt" pessoal coerentemente, mediante escolhas livres nas situações que envolvem suas relações com os outros e com o mundo. Evidentemente, isto só será alcançado pelo seu envolvimento num vir a ser autêntico. Neste contexto, o sentido da existência não se esgota na intenção de realizar determinadas metas, mas no compromisso do eu sujeito com a ação consentânea, com o gesto apropriado, com a atitude coerente na concretização de um projeto humanístico conscientemente escolhido. O projeto existencial deve definir-se na trilha da autenticidade e da fidedignidade; e esta definição encerrará o significado da “existência” pessoal. Vivendo este significado no limite das suas possibilidades o homem se conservará integro, em cada momento, esteja flutuando num mar de rosas, ou carregando um pesado madeiro.
            Podemos teorizar sobre a estratégia de conquista da plenitude existencial. Mas o simples conhecimento desta estratégia não garante  adesão aos valores implícitos na proposta existencial escolhida;  só o compromisso incarnado numa prática consistente implicará  em mudanças psicoafetivas radicais capazes de transformar o núcleo pessoal mais profundo no sentido de alcançar o objetivo almejado – a realização existencial plena. Para muitos, mudanças assim exigentes, tão pouco naturais, não se fariam sem o concurso de algo misterioso que transcendesse o puro dinamismo psicobiológico! Este argumento está implícito na postura espiritualista que busca na fé, na esperança e no amor, as forças espirituais que propiciam as transformações pessoais. Estas virtudes representam um hiato na história da vida, um salto evolutivo incompreensível à luz da dialética linear, científica, bio-psico-social. No curso da Evolução é tal o ineditismo da consciência reflexiva e das virtudes que lhe são inerentes, que muitos as  atribuem a um Princípio exclusivo. Esta linha de pensamento deu origem ao maniqueismo[2] consubstanciado na crença em que há oposição radical entre o Espírito e a matéria, conclusão inevitável sob o olhar de uma epistemologia fenomênica. Todavia, através das lentes de uma abordagem especulativa inteligente e inclusiva pode-se entender a consciência reflexiva como o grau máximo de convergência dos centros organizacionais[3] dispersos nos corpos simples que, incansável e progressivamente se complexificaram[4] sob uma “força misteriosa” de coesão inerente e transcendente ao cosmo[5]. Nesta perspectiva o mundo e a consciência não resultam de dois Princípios opostos, a matéria e o espírito, mas de uma ordem absoluta que transcende a ambos, impressa em cada partícula do cosmo como um holograma[6]. Ordem que se reproduz na capacidade humana de pensar logicamente, e simbolizar na linguagem os pensamentos e os sentimentos. Esta autonomia subjetiva do “eu sujeito” confere ao homem a capacidade de contrapor-se aos impulsos egoicos, e de socializar-se voluntariamente.  Á sua inclinação natural para o prazer e para o poder soma-se uma nova dimensão, a de dar um sentido ao seu vir a ser existencial. Esta reorientação deixa aberta a possibilidade de que a força de coesão que preside a própria Criação seja, fundamentalmente, um Absoluto inclusivo presente como linguagem secreta – uma cifra – na intimidade do universo objetivo. Absoluto que se poderia identificar com a deificação do “amor”! Pode-se constatar que no processo evolutivo, antes do homem pontificavam os  instintos, frutos de determinismos biológicos, e agora a participação social consciente, o altruismo, a compaixão, a necessidade de coerência e de sentido sobrepõem-se às forças profundas da vida  animal. Predominam as novas tendências evolutivas inerentes ao exercício da consciência reflexiva, livre e responsável. Difícil será explicar tudo isso através de uma concepção mecanicista do mundo, uma vez que a origem da consciência não é redutível a uma explicação fenomenológica. Especulativamente, podemos chegar ao máximo da afirmação de que a consciência universal existe eternamente[7] como um Princípio inerente e transcendente manifesto ostensivamente, afinal, quando no seu dinamismo evolutivo a complexificação da matéria ensejou o desenvolvimento de estruturas especializadas no Sistema Nervoso Central, que viabilizaram a comunicação simbólica. Este fato coincide com a emergência simultânea do sujeito consciente e da linguagem. O homem poderia não ter existido, mas, existindo, dá testemunho da Consciência Universal, um Absoluto que envolve a consciência individual e o mundo[8].
Everaldo Lopes


[1] Consciência reflexiva  livre e responsável.
[2] Doutrina segundo a qual o Universo foi criado por dois princípios antagônicos:Deus ou o bem absoluto e o mal absoluto ou o Diabo
[3] Centro do equilíbrio de cada sistema objetivado no cosmo.
[4] Lei da complexificação crescente de Teilhard de Chardin .
[5] Esta realidade se torna mais razoável quando a olhamos através dos princípios da lógica complexa.
[6] Num holograma cada parte possui informação do todo
[7] Veja neste blog em “Devaneio especulativo I”, a relação entre a ordem do Universo e  uma intenção implícita que pressupõe a consciência  universal.


[8] O significado desta conclusão especulativa se aproxima da intuição do Apóstolo João que numa linguagem mística anuncia:”No princípio era o verbo, e o verbo era Deus e o verbo estava com Deus.” (Jo 1:1)

6 comentários:

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  2. Pois é, painho, eis que o mundo é constituído de homens e mulheres que produzem cotidianamente suas vidas, utilizando-se das mais variadas estratégias existenciais, sendo o que os colocam em condições absolutamente únicas e singulares. Nessas condições, todos produzem suas vidas, a partir das diferenças e desigualdades que os constituem, seja numa dimensão social, seja na esfera pessoal e subjetiva. Isso é o que produz a inevitável dessemelhança entre os seres humanos.

    Alguns fazem o bom uso da inteligência, da intuição e da criatividade; outros, a despeito do salto evolutivo vivenciado pela humanidade, mantém-se produzindo a vida de forma ingênua, através de práticas medíocres e, às vezes, até, levianas, num claro desconhecimento do quanto é especial a condição de estar vido e ser-para-o-mundo numa dimensão existencial.

    Seu texto explicita algumas antinomias que nos acompanham cotidianamente e que, de certa forma, constituem-se fontes das muitas angústias e sofrimentos existenciais, tais como: saber-se finito, mas desejar-se eterno; viver as agruras da imprevisibilidade, mas, desejar exercer o controle sob su própria vida e da vida alheia; reconhecer os limites do conhecimento, mas, mesmo assim, nutrir ambições de um saber pleno e totalizante da realidade.

    Não sei se todos os humanos contactam com essas antinomias, nem ambicionam sua realização existencial plena. Mas, sei que, com ou sem conhecimento, todos buscam ser felizes e, segundo Freud, o projeto de felicidade guarda uma marca absolutamente singular entre os sujeitos sociais. Isso quer dizer que não existe uma fonte única de conquista da felicidade; ou seja, o que proporciona uma sensação de felicidade para mim pode ser fonte de sofrimento para o outro. Essa é antinomia insuperável. Daí porque entendo, cada vez mais, que a partilha da vida que resulta num encontro existencial é uma forma de Deus presentificar-se em nossas vidas. Isso é a verdadeira felicidade: o encontro existencial. Tenho o privilégio de desfrutar desse encontro com algumas pessoas ao longo da minha já quase longa vida; isso me faz acreditar na presença de Deus em minha trajetória; evidente que o nosso encontro existencial soma muito para que eu possa sentir e saber que o entendimento mútuo, e a reciprocidade do amor, constituem-se num verdadeiro milagre.

    Desculpe se entrei por outras searas...mas foi o que o seu texto me suscitou partilhar com você.

    Beijo da filha, com amor,

    Ruth.

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  3. Filha.
    Todos os homens “contatam” com as antinomias da existência e, quiçá, ambicionem existir plenamente. A diferença é que muitos sentem o mal-estar induzido por suas contradições internas sem identifica-las, e nem todos têm consciência clara do significado próprio de existir plenamente. Não se dão conta de como a partir da condição humana se constrói a existência... ou como mobilizar os recursos individuais disponíveis para realizar esta construção. Não saberiam enunciar analiticamente os elementos envolvidos no vir a ser existencial, nem como integrá-los num só esforço pessoal de autoafirmação. Você identificou bem esta situação quando falou do “Claro desconhecimento do quanto é especial a condição de estar vivo e ser para o mundo uma dimensão existencial”.
    Mas todos sentem a angústia resultante de uma experiência íntima de impotência diante do sentimento de estar dividido entre impulsos e desejos discordantes. Estas contradições sobrecarregam a condição humana, e geram ansiedade cuja origem é muitas vezes atribuída aos conflitos menores que deparamos nas nossas relações sociais.
    O desconforto da vivência de impermanência que afeta o ser consciente exige dele uma resposta eficiente para anular os seus efeitos. A mais definitiva é a atitude humilde de entrega consciente aos desígnios da vontade divina. Mas a prática deste comportamento místico depende de virtudes (fé, esperança, amor) que são dotes especiais. E quando estes se manifestam timidamente ou não têm a força para alavancar o equilíbrio existencial, o homem procura “distrair-se” da sua realidade dolorosa, em entretenimentos diversificados ao gosto de cada um. Neste ponto é fundamental o controle social para coibir os excessos ou a utilização de recursos degradantes como é o caso das drogas.
    A necessidade de escapar da angústia existencial confunde-se com, ou reforça o desejo de ser feliz. Mas a felicidade não é algo que exista por si mesmo. É o contentamento resultante de uma conquista pessoal no campo afetivo, intelectual ou mesmo material. Eventualmente ela é um acontecimento desejado cuja realização pode surpreender-nos gratuitamente, mas na maioria das vezes é fruto de empenho pessoal, num esforço dirigido. O Poeta a descreveu como: “Felicidade... Sombra que só vejo, / Longe do pensamento e do desejo, / Surdinando harmonias e sorrindo, / Nessa tranquilidade distraída, / que as almas simples sentem pela vida, / Sem mesmo perceber que estão sentindo...” Mas esta é a felicidade dos ingênuos, e perdemos nossa inocência desde o Pecado Original!... Todavia, agora precisamos reconquista-la. Mas não a encontramos nunca como algo substantivo, e sim como acompanhante das conquistas existencialmente significativas que fazemos ao longo da vida.
    Você vê no verdadeiro encontro o testemunho miraculoso da presença de Deus em nossas vidas. Você tem razão, mas numa visão holística Deus está presente nos nossos bons e maus momentos, nada existiria no tempo se não tivesse o suporte do absoluto criador que em outras publicações eu tenho associado a um Dinamismo absoluto eternamente criativo. Este tema é empolgante e certamente voltaremos a falar sobre ele em outras oportunidades, mais detidamente.
    Obrigado filha, por sua intervenção.
    Um beijo do pai.
    Everaldo

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  4. Painho,

    Concordo que a angústia é vivenciada por todos os viventes, ainda que apenas alguns cheguem a encará-la de frente, esmiuçando os elementos que produzem esse sentimento. Muitos, certamente, preferem tamponar a dor da angústia utilizando-se de estratégias fugidias, lançando mão de recursos outros, tais como as drogas ou uma entrega irrefletida aos dogmas da religião.
    Sabemos, pois, que a angústia já foi o motor de muitas obras espetaculares; e continuará produzindo muitas belezas, é claro! Belos poemas, músicas, tratados filosóficos, poesias, livros, dissertações, filmes, enfim, muitas obras foram produzidas exatamente a partir de um vazio existencial, para preencher esse vazio, numa tentativa de responder a questões existenciais fundadas nos sentimentos sufocantes produzidos pela angústia.

    Apesar de todos nós sermos artistas no palco da vida, apenas alguns produzem obras originais, é verdade! Essa é uma tarefa fica para poucos. Até porque nem todos têm os recursos (subjetivos, principalmente) necessários para produzir uma obra de arte que venha a preencher esse vazio existencial produzido pela angústia. Mas, todos os humanos, ricos ou pobres, são capazes de produzir a vida com criatividade. Somos tão especiais, pela nossa capacidade de atribuir sentido à vida, que às vezes "do nada" criamos uma possibilidade, uma alternativa, um sentido, algo que nos empurra para frente...
    Ao escrever essas palavras, veio-me a mente a cena de um sertanejo, chorando, diante de plantação perdida pela falta de chuva. (Tema de belíssimas músicas de Luiz Gonzaga e outros).
    Esse mesmo homem é capaz de resignificar a vida, falando de esperança, de criar alternativas para a sobrevivência, sem deixar de reconhecer a crueldade do tempo que lhe impossibilitou a colheita. Apesar de essa cena nos remeter a uma limitação vivenciada no campo objetivo, há nesta mesma cena a presença de uma disposição subjetiva, de um sujeito disposto a enfrentar as intempéries da vida, superando, suportando, criando alternativas.. nessa cena sinto o verbo esperançar se fazendo ação. E também me lembro da obra de arte de Guimarães Rosa, “Grande Sertão, veredas”.

    Enfim, painho, a vida é muito diversa e plural, assim como são diversas e plurais as condições de vida que cada um possui para se produzir; condições e contextos que, na maioria das vezes, não passam por escolhas pessoais. Lembro, agora daquela célebre frase de Freud (ou Nietzsche, tenho dúvidas): "Não importa o que fizeram de mim, o que importa é o que farei com o que fizeram de mim". Este é o "X" da questão! E, nesse vendaval da vida, poder contar com a sorte...

    Beijo no coração, com amor, da filha,

    Ruth.

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  5. Filha.
    Você finaliza seu comentário, como sempre pertinente e perspicaz, com uma observação que nos remete a um problema que todos vivemos; o confronto entre a facticidade e a liberdade pessoal. A facticidade como você sabe representa para cada um tudo que antecedeu sua participação na realidade como um “eu” agente; algo que não se pode mudar caracterizado pela circunstância ambiental, social, cultural dentro do qual o eu agente escolhe, delibera e age agora, exercendo sua liberdade contingente. De alguma forma este conflito equivale ao que existe entre a liberdade absoluta de Deus e a liberdade contingente de suas criaturas. Contexto em que cabe muito bem a afirmação de Jean Paul Sartre que você aspeou.
    Outrossim, aproveitando ainda a sua deixa, outro tema sobre o qual temos muito a conversar é o que entendemos por sorte. Obviamente, o que atribuímos à sorte é na verdade o resultado da interação das ações de muitas pessoas cujas escolhas influentes entre si fazem parte de um processo universal que abriga infinitas possibilidades, e que em dado momento cruzou com nosso vir a ser consciente. Nesta encruzilhada a sorte seria um acontecimento previsível se possuíssemos o conhecimento da malha de todos os eventos que que convergiram para determina-lo; embora o exercício da liberdade de quantos participam deste processo abra uma faixa de imprevisibilidade estatisticamente difícil de eliminar. Evidentemente, a complexidade da existência transcende a lógica linear. A circularidade causal é que me fascina na abordagem da realidade existencial mediante a lógica complexa capaz de ordenar os eventos de um todo holístico.
    Como você vê, filha, sua observação inteligente tem muitos desdobramentos e deságua, finalmente, no problema metafísico teológico antes anunciado de como conciliar a liberdade absoluta de Deus e a liberdade limitada de suas criaturas conscientes. Certamente ainda teremos muito que conversar sobre este tema. Antecipo-me com estas considerações apenas para demonstrar como é importante a interlocução para despertar novos olhares sobre a realidade. Suas intervenções sempre me inspiram.
    Deus a abençoe. Um beijo do pai.
    Everaldo

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  6. Obrigada, painho. Para mim é realmente um privilégio ter esse diálogo com você; aprendo infinitamente com suas reflexões. Sobre a sorte, precisamos conversar mais, quero ouvir mais...seria algo assim como a trilha de um desejo anunciado? Então, o que seria o azar?

    Beijo da filha,

    Ruth.

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