O
noticiário que a mídia divulga diariamente registra a monótona repetição de
eventos depressivos. Assassinatos, latrocínio, corrupção, sequestros, estupros,
crise econômica, desemprego, fome, desabrigo, assistência médica deficiente e
educação precária! Num desses dias, desencantado com este panorama desanimador
demorei a conciliar o sono. Finalmente, adormeci e sonhei... Ou foi uma
visão!!! Não sei bem. De qualquer forma recordo. Avistei
na tela da minha fantasia imenso vale onde uma multidão se agitava
inquieta. E ouvi o que diziam aqueles
homens e mulheres espalhados até perder de vista. O alarido era grande. Operários
oprimidos bradando seus protestos contra a exploração do capital desalmado. Nas
bolsas, os pregões do cobiçoso mercado de ações. Políticos
em campanha eleitoral esbanjando eloquência em discursos demagógicos. Professores
mal remunerados pedindo verbas para a melhoria do ensino público. Os sem teto,
sem roupa, sem comida, reivindicando abrigo, agasalho e alimento. Jovens inquietos
e despreparados escondendo a própria ansiedade em curtições ruidosas ou no
inferno aliciante das drogas. Idosos dissimulando as perdas da velhice com piadas
insípidas. Doentes aos milhares a pedir socorro médico ou, genuflexos, orando e
esperando curas milagrosas, sem saberem o que fazer para ser feliz no tempo de
vida que lhes for acrescentado. Agentes de saúde reclamando recursos materiais
e técnicos. Líderes inflamados por ideias humanitárias discursando para
plateias descrentes suas mensagens de solidariedade entre os homens; enquanto a
violência impera no seio das famílias e entre os povos. Estas cenas se
atropelaram na minha imaginação não mais do que alguns segundos num tumulto incontido.
Felizmente, como se despertasse de um pesadelo, no momento seguinte elas já
haviam sumido. Mas eu fiquei tenso e interrogativo!!! Era forçoso reconhecer
que as imagens reunidas naquela visão fantástica formavam um quadro surrealista
da humanidade não muito distante, porém, da realidade que vivemos!!! Por que tanto
infortúnio se todos aspiramos à felicidade? Pensei! E logo percebi o óbvio. O
mundo só seria diferente se cada um exercitasse os seus talentos, sábia, proba
e oportunamente, “implementando” programas políticos, econômicos, sociais de
cooperação e partilha. Mas logo me adverti que isso dependeria da conversão de
todos os homens a paradigmas opostos aos que prevalecem no nosso mundo
capitalista globalizado[1].
E concluí com tristeza que a solidariedade universal é um sonho distante. Senti
quão urgentes são as mudanças solidárias na postura ética dos indivíduos. Mas,
ao mesmo tempo ponderei que é no mínimo pretensiosa a intenção de transformar
as pessoas. É preciso que cada um se esforce para mudar a si próprio; “temos
que nos tornar a mudança que queremos ver.”[2]
O caminho é o autoconhecimento, a autenticidade e a disciplina emocional. Compreendendo-se, o indivíduo poderá reorientar-se
se tiver o autocontrole necessário. Aprenderá a bem utilizar as virtudes que
lhe são inerentes, num esforço real para viver os valores superiores da
Humanidade. A “existência” centrada no desempenho da consciência reflexiva
contemporânea do livre arbítrio é o cadinho onde se misturam e se fundem as
experiências reais capazes de transformar o mundo mediante ações humanas
construtivas. No âmbito da existência é que o homem identifica seu objetivo e
faz uma opção consciente diante das alternativas possíveis. O objeto dessa
escolha deverá transformar-se em realidade através da ação livre, decidida, esclarecida
e coerente do sujeito consciente e responsável. Por ai começam as transformações
indispensáveis à construção de um mundo melhor.
Há
uma oposição aparente entre a consciência reflexiva e o mundo. Estas duas
dimensões não se explicam mutuamente, todavia elas são inseparáveis no modo de
ser próprio do homem. É fácil constatar
que a consciência de ser alguém ocorre juntamente com a de estar no mundo. A ordem
implícita na evolução desde a matéria primitiva até o homem[3]
dá lugar a especulações lógicas[4]
sobre a consciência e o mundo.
Ora, não há ordem sem intenção. Mas a
intenção efetiva implica escolha objetiva seguida de deliberação o que supõe
consciência. Constatada a ordem evolutiva que assinalamos impõe-se a questão de
explicar o advento da consciência e do mundo. Para não cair no dualismo metafísico
é forçoso admitir que a consciência está potencialmente presente nas menores partículas
de matéria, que se unem em prol de um servomecanismo capaz de manifesta-la (a
consciência) em sua plenitude reflexiva[5].
Objetivo que se concretiza no homem através da extrema complexidade do Sistema
Nervoso Central. A grande conquista do exercício da consciência reflexiva é a
possibilidade da reformulação dos padrões evolutivos mediante a inserção da liberdade
no processo evolucionário. A existência é exatamente o espaço humano em que
ocorre um diálogo íntimo entre o conhecimento imediato da própria atividade
psíquica, e a representação racional e emocional do mundo que esta atividade espelha.
Anula-se na intimidade subjetiva a
aparente oposição entre a consciência e o mundo. A razão, a intuição criativa e
o livre arbítrio disciplinam e redimensionam as potencialidades da Natureza.
O indivíduo assegura esses valores,
confirmando-os com a própria existência. Ao incorporar a liberdade, o processo
evolutivo torna imperiosa a responsabilidade ética das escolhas pessoais solidárias
para garantir a sobrevivência da espécie humana e dar continuidade à própria
Evolução.
O
grande desafio é o salto evolutivo do Homo sapiens sapiens para o Homo sapiens
eticus, que já não depende de uma mutação genética porém do bom uso da
liberdade. Nessa perspectiva cabe ao homem desempenhar seu papel na Evolução,
mediante o exercício livre da “solidariedade” indispensável à construção da
comunidade humana.
Everaldo Lopes
[1]
Representados pela competição frequentemente aética e acúmulo de riqueza
[2] Gandhi
[3] Ser
consciente e responsável
[4] Estas
ideias já foram discutidas em Devaneio especulativo I, texto postado neste
blog.
[5] Atributo
pelo qual o homem toma em relação ao mundo(e posteriormente em relação aos
chamados estados interiores, subjetivos)
aquela distância em que se cria a possibilidade de níveis mais altos de
integração.(Dic. Aurélio)
Painho,
ResponderExcluirA descrição de sua visão, sonho ou pesadelo foi tão fiel e realista que senti o mesmo desconforto que você experimentou ao vivenciar esse momento. Diante de todos os desastres,desgraças e desencontros que assistimos cotidianamente, a pergunta que nos resta é realmente a que você formulou: "Por que tanto infortúnio se todos aspiramos à felicidade?". O problema é que quase sempre a felicidade de uns implica na infelicidade de outros. Também acontece de alguém fazer o mal intencionalmente; mas, outras vezes, o mal pode resultar de consequências não intencionais de ações humanas.
A cada dia convenço-me que a harmonia, a solidariedade, a compreensão, a cooperação, a amizade, o encontro entre dois ou mais é uma dádiva, uma raridade... quem tem o privilégio de vivenciar encontros interpessoais ou sociais pode sentir-se um felizardo!
O encontro no campo da amizade, na esfera amorosa, no espaço profissional, no convívio familiar; enfim, o encontro respeitoso entre pessoas (conhecidas e desconhecidas) é algo tão especial que merece todas as comemorações por parte de quem vivencia essa dádiva.
Às vezes quero me desiludir de vez com a humanidade; mas, logo penso que não tenho esse direito ... existem muitas pessoas por quem vale a pena viver e sonhar ...
Enquanto escrevo para você vi transcorrer a passagem do dia 26 para o dia 27 de maio. Hoje completam 19 anos em que tive o privilégio de ser mãe pela segunda vez; há 19 anos nascia Daniel, meu filho e seu neto. Por ele, por todos os nossos filhos e seus netos, e por todos os jovens desse mundo, não posso desacreditar na humanidade! Que Deus fortaleça-me na crença de que podemos construir um mundo melhor; que Deus possibilite-me muitos gestos de solidariedade e amizade, muitas vivências amorosas, pautadas no respeito e na responsabilidade; e que Deus permita-me fazer a diferença nesse "mundo velho sem porteira". Desejo sinceramente, que o Homo sapiens eticus vença essa batalha...
Painho, adorei, mais uma vez, suas lúcidas reflexões. Faz-me acreditar, recuperando minha esperança que está um pouco abalada com os tristes acontecimentos desse mundo, que nem tudo está perdido.
Obrigada por suas palavras que iniciaram tão desoladoras e terminaram tão inspiradoras!!!
Beijo no coração, de sua fiha,
Ruth.
Filha.
ResponderExcluirSeus comentários sempre me levam a uma compreensão mais profunda das ideias que lhe exponho. Ao confrontarmos nossos pontos de vista inspirados em experiências pessoais autênticas, objetivando compreender os verdadeiros propósitos da existência estamos construindo o futuro da humanidade. Ou seja, estamos pondo o nosso tijolinho na edificação de uma convivência solidária que acreditamos ser o propósito final da própria Evolução. Tomamos a Evolução como um critério válido e impessoal para o julgamento que deve reger com equidade as nossas escolhas. Fieis a este objetivo jamais nossa felicidade deverá implicar, realmente, na infelicidade de alguém. Mesmo quando eventualmente o projeto evolutivo perseguido pelo Dinamismo absoluto eternamente criativo que age através de cada um de nós contrarie projetos individuais amesquinhados pelo egoísmo. Por definição, as interações humanas equânimes, inteligentes, conscientes e responsáveis são sempre construtivas. Quando nos propomos respeitar as diferenças o fazemos convictos de que esta postura não significa ratificar argumentos que não se pautam nos valores universais (verdade, justiça, solidariedade) que devem lastrear uma visão de mundo compatível com a comunidade humana. Este é o sentido da grande lição do Mestre quando aconselha condenar e repudiar o pecado, mas amar o pecador. Prática muito exigente que obriga a um esforço disciplinado. Humildemente reconhecemos que nem sempre estamos à altura desta conduta exemplar. Mas enquanto formos leais à proposta comunitária, apesar de nossas imperfeições, estaremos influindo num processo que a todos beneficiará, mesmo que momentaneamente obstaculize interesses transitórios nossos e do nosso próximo. Acho que o encontro respeitoso é o primeiro passo decisivo para a realização desta proposta que desembocará, finalmente, no amor universal, desde que o respeito mútuo tenha raízes no autorrespeito de cada um dos interlocutores. Isto implica em autoconhecimento, disciplina intelectual, emocional e vontade decisória de cada um. Por isso é tão raro o encontro interpessoal que deveria caracterizar, sempre, a parceria humana. Todavia os esforços atuais neste sentido produzem resultados acumulativos que podem até passar despercebidos, por um momento, mas resultarão sempre numa conquista muitas vezes inesperada. Você declara sua crença nesta afirmação quando afirma que vale a pena continuar lutando, sem nunca desistir.
Obrigado pela contribuição do seu comentário. Deus a abençoe.
Beijo do pai.
Everaldo