Na medida em que progride a inversão da pirâmide etária, mais evidentes se tornam os problemas inerentes à convivência entre as gerações. Dividindo o mesmo espaço geográfico e social, as novas gerações convivem com um número cada vez maior de idosos. Estes esperam dos filhos e netos um tratamento atencioso, e seus descendentes dispõem de cada vez menos tempo para um convívio mais íntimo... As mudanças aceleradas de hábitos e saberes impostos pela revolução tecnológica os distanciam mais rapidamente do que no passado. Enquanto os jovens absorvem as novidades com rapidez, os idosos resistem... Paralelamente se instala uma frente de conflito caracterizada de um lado pelo desejo dos idosos de aproximação maior com os descendentes, e do outro, pelos interesses destes que os levam em outra direção, embora dediquem afeto aos vovôs. Os anciões argumentam que são credores do cuidado que dispensaram aos seus descendentes enquanto recém-nascidos, crianças e adolescentes. Os que participam desta reivindicação, aparentemente justa não se dão conta de um detalhe. Tratando-se de crianças e jovens, pais e educadores prevêem conquistas e têm expectativas alvissareiras para o seu investimento e envolvimento atuais... Ao contrário, os cuidadores de idosos carentes convivem, inevitavelmente, com perdas dolorosas e com o espectro da morte do ente querido. Deles exige-se, portanto, um esforço adicional de elaboração da própria fragilidade diante do destino comum.
Os problemas suscitados pela relação entre as gerações merecem um olhar crítico, pois facilmente assumem um caráter piegas ou dramático. Envolvem interesses e necessidades das partes envolvidas, que precisam ser analisados com isenção emocional... Devem ser avaliados objetivamente a fim de evitar atitudes passionais. Os conflitos inerentes envolvem problemas afetivos, econômicos, sociais e educacionais, e seu enfrentamento depende do nível de auto-confiança e maturidade das pessoas envolvidas. Uma abordagem superficial ensejaria erros grosseiros de avaliação...
Do ponto de vista prático, não se discutem os cuidados básicos (alimentação, abrigo e proteção) com o recém nato e com as crianças... Estas atenções são inquestionáveis. Com variações mínimas, culturas diferentes nos quatro quadrantes da Terra colocam a responsabilidade desses cuidados sobre os ombros dos pais biológicos. O que à primeira vista parece razoável, uma vez que o filho foi gerado por iniciativa do casal, e a própria condição biológica da procriação gera laços fortes entre pais e filhos. Este contato inicial se prolonga num contexto educacional, durante a adolescência e a profissionalização, até que os jovens tenham condições de assumir as próprias vidas. Compete aos pais e ao Estado o apoio moral e material proporcionado aos jovens até sua plena maturidade psicossocial e preparo para o exercício de uma profissão. Com o passar dos anos aumenta a autonomia do filho e decresce a influência parental. Desta forma, a longo prazo, os pais podem se tornar dependentes intelectual e financeiramente dos filhos... Mas esta relação de dependência tem aspectos emocionais, sociais e existenciais específicos. O idoso desperta sentimento de aproximação diferente do que é suscitado por uma criança. A carência é a mesma, porém o contexto é diferente. Quando o idoso precisa de cuidados especiais dos filhos estes já estão sobrecarregados, comprometidos moral e materialmente com mulher e filhos, sua nova família. Este novo compromisso corresponde a obrigações inadiáveis do casal, reduzindo o tempo e recursos que gostariam de dedicar aos pais. Dificuldade que passou a configurar-se de forma ostensiva depois da transformação da família extensa (sucedânea da patriarcal), na família nuclear (dita departamental). A grande família que reunia duas e até três gerações ficou reduzida ao casal e seus filhos. No primeiro caso os idosos e as crianças faziam parte de um complexo no qual todos se ajudavam mutuamente, dividindo o mesmo espaço físico e a renda familiar. No segundo caso separaram-se os casais com seus filhos que passaram a ocupar espaços diferentes, assumindo os grupos nucleares, isoladamente, suas próprias responsabilidades. Em face desta nova configuração familiar surgiu o problema do suporte assistencial para os idosos que perderam a autonomia econômica e social de suas próprias existências e já não se enquadram funcionalmente em qualquer dos grupos desmembrados. As soluções praticadas comumente se resumem à “adoção” do idoso por um dos filhos ou a sua manutenção em casa ou apartamento só a ele destinado, sob a guarda de um cuidador remunerado. Dependendo do status econômico, as despesas com duas “casas” podem criar ônus financeiro insuportável... Na maioria das vezes este é o caso... E a insolvabilidade financeira cria situações dramáticas para o filho que não dispõe dos recursos exigidos e para o idoso incapaz de administrar sua própria vida. Configuram-se, então, situações cruéis para os idosos que se sentem um fardo para os descendentes, e para estes que passam a ser tidos, eventualmente, como faltosos em relação ao cuidado com seus pais... Todos conhecemos os efeitos dissolventes deste conflito que se prolonga em dilemas inquietantes.
O exame desapaixonado da questão mostra a íntima relação dessas dificuldades com a organização social e por consequência com o modo como o Estado burocrático encara o problema. Afinal, do ponto de vista evolutivo a procriação objetiva a sobrevivência da espécie. O amor dos pais aos filhos e vice-versa é uma intercorrência virtuosa e desejável, porém, por mais amor que os pais dediquem ao seu rebento, este está predestinado a servir à sociedade e à espécie. Portanto, teoricamente o Estado responsável pela harmonia da vida coletiva deveria assumir a maior cota de responsabilidade nos cuidados com as frações inativas da sociedade. Utopicamente, os Poderes constituídos deveriam chamar a si a responsabilidade financeira e pedagógica em relação aos cuidados com os recém nascidos, crianças e adolescentes até a completa formação intelectual e profissional... Da mesma forma que o Estado deveria dar cobertura assistencial aos idosos que já não podem mais arcar materialmente com a própria manutenção, mas, contribuíram durante toda vida para a sustentação do aparelho administrativo da sociedade. A assistência aos idosos não pode se restringir a ações pontuais generosas de pessoas físicas (familiares ou filantropos), ou instituições (ONGs e iniciativas paroquiais). Obviamente, a ação do Estado não suprime o zelo dos familiares expresso em gestos solidários e carinhosos, mas deve ser suficiente para evitar o desamparo de infantes, adolescentes e de idosos carentes. Esta orientação pressupõe, num Estado democrático, atuação inteligente, íntegra e efetiva do Legislativo, do Executivo e do Judiciário. O problema se agrava pela prática democrática cínica, lamentavelmente, instalada no âmbito de uma economia de mercado que privilegia a competição (não raro aética), e o acúmulo de bens materiais nas mãos de uns poucos privilegiados, exploradores, direta ou indiretamente, de uma grande massa de excluídos envolvendo até crianças e adolescentes. Por conta da corrupção e da falta do rigor vigilante sobre a execução de programas educacionais e previdenciais específicos, malversam-se os recursos alocados para financiar uma política efetiva educacional, e de amparo aos idosos. Dessa forma, muitos “excluídos” (crianças, adolescentes e idosos) passam a depender da cooperação solidária dos espíritos sensíveis movidos por sentimentos caridosos. Estas considerações levam à necessidade de reavaliar o sistema econômico vigente, e fomentar uma conversão das pessoas aos comportamentos cidadãos que representam, em nível social, a concretização da cooperação e da partilha como fundamento das relações produtivas comerciais e industriais.
Considerando a amplitude da problemática exposta, já não se pode enquadrá-la como uma questão ética restrita à família. Abrange, necessariamente, a sociedade como um todo, capitaneada pela máquina burocrática do Estado. A solução destas questões demanda não apenas ajustes formais do comportamento das pessoas, porém uma conversão íntima dos homens à prática responsável da verdade e da solidariedade em todas as suas atividades coletivas, como a única forma de salvar a humanidade de uma derrocada que se anuncia, já, através de muitos sinais perceptíveis.
No momento histórico que vivemos a corrupção na máquina utilizada por políticos inescrupulosos em benefício próprio, e o grande número de excluídos da riqueza das Nações enseja situações em que se revela o desamparo ostensivo de infantes, adolescentes e idosos que não contam com a assistência dos familiares também carentes de recursos financeiros. Situações muitas vezes caracterizadas por dramas familiares incontornáveis.
O comportamento solidário identifica-se com a cidadania... Já não é apenas uma virtude opcional, mas condição “sine qua non” de sobrevivência da própria humanidade.
Everaldo Lopes
Painho,
ResponderExcluirVocê só esqueceu de dizer que, uma vez tendo nascido, filhos e pais estabelecem um vínculo amoroso que os acompanha para sempre. Esse amor, construído a partir do mútuo reconhecimento, faz todas as partes, pais e filhos, sentirem-se amorosamente responsáveis uns pelos outros.
Não gostaria de ter sido recepcionada pelo mundo através do Estado. Essa educação seria excessivamente burocrática. Prefiro vivenciar a contingência do existir, sendo partícipe de erros e acertos humanos, mas onde todos estão implicados com a própria vida e a vida do outro. É muito mais complexo, porém, esta é a única possibilidade de ampliamos muito mais as possibilidades criativas de viver a transitoriedade da vida.
Adoro cuidar! Adoro ser cuidada! Devo ter aprendido a ser assim no convívio familiar de oito irmãos, onde havia um ambiente de partilha, de encontros e desencontros, de brigas e reconciliações, mas que, em última instância, o que contava era nos identificarmos como filhos de um mesmo pai e uma mesma mãe, de sermos uma família.
Painho, temos divergências com voe quanto ao que significa cuidar de uma mãe e um pai idosos. Mas, agora, estou apressada... vou viajar. Quando chegar retomo a conversa.
Beijo no coração, da filha,
Ruth.
Querido pai,
ResponderExcluirVi este tema ser abordado no seu primeiro livro "Casamento, Sexo e preconceito", já faz muito tempo. Naquela época, ainda adolescente, não concordei com essa ideia e manifestei-me de pronto. Hoje, adulta, mãe de família e esperando meu primeiro neto, releio a sua ideia e , novamente, não consigo assimilá-la como uma opção viável. Acho que Ruth traz uma argumentação com a qual me identifico. Fiquei feliz quando li o comentário dela. É exatamente o que queria lhe dizer e nunca consegui!!!
Grande Bjo
Pai,
ResponderExcluirAssino em baixo do texto de Ruth.
Beijos,
M. Inês
Filhas.
ResponderExcluirLi os comentários discordantes das ideias ventiladas no texto “Dependência”, postado recentemente. Entendo-as, e até me lisonjeia sabê-las defensoras de suas raízes familiares porque descubro nesta defesa o resultado de minha atuação como pai. Considero a adesão irrestrita à família consanguínea demonstrada nos comentários, como um testemunho da boa convivência que desfrutamos em nosso grupo familiar consanguíneo. Esta experiência favorável as leva, hoje, às restrições que fazem a qualquer ameaça ao modelo que lhes serviu de berço. No texto pretendi apontar a direção que imagino ser a mais provável na linha da história evolutiva do homem. Desde o primeiro momento, em 1981, quando pela primeira vez afirmei a incoerência de definir a família humana pelo critério biológico da consanguinidade não alimentava a ideia de polemizar. Estava como estou, hoje, convencido de que, do ponto de vista evolutivo, o deslocamento da ênfase política e social da família consanguínea, para a família cultural é inevitável. Não se pode antever quanto tempo será necessário para a aculturação dos novos parâmetros (da família cultural) mas a transformação é fundamental para a própria sobrevivência da espécie...
Por família consanguínea entende-se a formação de um grupo caracterizado pelos laços de sangue; por família cultural entende-se um grupo cada vez mais amplo de pessoas ligadas pelo respeito e responsabilidade recíprocos, decorrentes do exercício da condição humana (consciência e responsabilidade) inspirada na solidariedade. Enfim, respeito, responsabilidade, conhecimento profundo e estima são componentes do amor que deve unir a comunidade de todos os homens. Os laços de sangue não garantem o amor humano... Quando este sentimento se desenvolve entre os membros da família consanguínea é ainda um produto cultural. O amor parental entre humanos se distingue do instinto que caracteriza a ligação do animal às suas crias. Refletindo esta diferença, a família cultural é o fundamento da estrutura social humanística, inerente à comunidade de todos os homens. Não esqueçamos que o homem não é mais um ser natural, porém um ser de cultura. A hominalidade expressa na prática da condição humana resulta de escolhas... não é previsível, e não existe um protótipo humano na Natureza. Definir a família humana pelos vínculos genéticos de consanguinidade contradiz o caráter espiritual (consciência reflexiva) do homem como um ser de cultura. Aliás, esta tese está implícita em algumas afirmações aparentemente enigmáticas de Jesus, o Mestre dos mestres. Em S. Mat. 19:29, o Nazareno disse: "E todo aquele que deixar o lar, irmãos, irmãs, o pai, a mãe, a esposa, os filhos, ou propriedades, para Me seguir, receberá cem vezes mais, e terá a vida eterna." Seguir Jesus, o maior humanista de todos os tempos, não é mais do que integrar-se na comunidade humana, como membro da grande família cultural. Sei que na prática político social, historicamente, a família cultural com esta conotação universal é, hoje, uma utopia. Por enquanto, o modelo consanguíneo está satisfazendo as exigências das práticas humanas coletivas, inclusive as econômicas, preenchendo a necessidade do homem de estar engajado num grupo. Mas o modelo é limitado para as aspirações transcendentais do homem.
Quando proponho que ao Estado cabe maior cota de responsabilidade na educação das crianças e ampla assistência aos idosos, estou deslocando a ênfase que se dá entre nós, da “família consanguínea”, para a “família cultural”. Nesta “revolução” a consanguinidade passa a ser uma circunstância, apenas, no âmbito abrangente da “família cultural”. Obviamente, na transição, a longo prazo, as responsabilidades de manutenção e educação hoje impostas aos pais biológicos se deslocará para instituições coletivas cuja gestão caberá ao Estado político como executor dos reclamos da própria comunidade humana. Não visualizo, momentaneamente, uma transição que prescinda de alguma burocracia. A organização burocrática será necessária num primeiro instante da mudança... E, convenhamos, uma relação burocrática humanizada não exclui o sentimento amoroso. Imagino que em buscando a perfeição perdida, o homem vai introjetando os algoritmos solidários que integram o amor humano... E, no final, os homens não serão mais regidos pelos resíduos burocráticos inevitáveis, para o gerenciamento da grande empresa humana... então, cada um atuará responsavelmente, fazendo o que lhe sugere a consciência sem qualquer tipo de constrangimento (intervenção de uma autoridade externa). Nos últimos milênios, mutantes humanos isolados estão alertando para a necessidade de uma nova ordem indispensável à construção da comunidade humana...e este alerta, na minha leitura, passa pela mensagem inscrita na estrutura da família cultural.
ResponderExcluirFilhas, poderemos prolongar este diálogo, se for do agrado de vocês, mas só para tornar mais claro o meu ponto de vista, sem a menor intenção de polemizar.
Um beijo do pai.
Everaldo
Painho,
ResponderExcluirEntendo que a família biológica, consanguínea, e a família cultural não se constituem em esferas excludentes; ao contrário, uma pode e deve reforçar e fortalecer a outra. Assim, podemos pensar que o sentimento de pertencimento a uma comunidade humana passa, necessariamente, por um processo educacional vivenciado nas relações amorosas presentes no espaço familiar.
Desculpa! Você e mainha são responsáveis por pensarmos assim; vocês nos ensinaram muito bem o sentido e o significado de ser família, inscrevendo valores como solidariedade, companheirismo, lealdade, cooperação, respeito e responsabilidade pelo outro. Ou seja, somos um exemplo de que os cuidados e a criação através da família consanguínea não trouxeram deformações no sentido de termos nos tornado mais individualistas e egoístas.
Talvez meu desapontamento em função dos caminhos tomados pelo Estado (em nível local, estadual, nacional e mundial) não me permitam visualizar "uma relação burocrática humanizada", com a presença de um "sentimento amoroso". O desamparo, o desamor, a indiferença e, também, a intolerância têm sido a marca de muitos Estados que compõe a federação brasileira. Minha capacidade de acreditar numa revolução molecular não chega a tanto. Quem sabe um dia possa voltar a acreditar que o Estado é uma instituição capaz de gerir as nossas vidas com amorosidade. Nesse particular, digo, "tudo pode acontecer, inclusive, nada"!
Beijo no coração, da filha,
Ruth.
Filha.
ResponderExcluirEstou convencido de que já alinhamos no espírito as linhas básicas e os fundamentos das teses em discussão. Aguardemos, pois,que esses ingredientes psicossociais interajam e ensejem a elaboração de uma escolha sábia no nível da história evolutiva do homem.Sei que acreditamos, ambos, na criatividade humana.
Um beijo do pai.