domingo, 9 de dezembro de 2012

Aventura humana I



Transcendendo a Natureza pelo exercício da consciência, o “Fenômeno Humano” passa a integrar uma realidade “existencial” eminentemente cultural[1]. O ato de conhecer simultaneamente a si mesmo e o mundo denota uma peculiaridade ímpar do ser humano. Ao dizer “eu sei que este objeto é real” o sujeito do conhecimento auto identifica-se ao tempo em que conhece algo que está fora dele. Portanto é, necessariamente, reflexivo.  O debruçar-se do sujeito cognoscitivo sobre si mesmo tem o caráter de um diálogo da consciência com o mundo, uma vez que o homem é uma extensão do mundo. Diálogo que levado às últimas consequências se ultrapassa ao descobrir elementos que lhe permitem extrapolar a ideia da unidade “consciência-mundo”. A vivência desta unidade resulta de um mergulho na subjetividade inteligente onde se confrontam o núcleo intuitivo e racional do indivíduo, e a representação conceitual de sua circunstância social e cósmica. Quanto mais profundo for o mergulho do ser consciente no interior de si mesmo, mais nítida se perceberá a convergência da consciência e do mundo. Os homens alcançam elevado crescimento pessoal na busca desta unidade estruturada na reciprocidade interativa absoluta das partes do todo universal no qual o próprio ser consciente se contextualiza. Por sua natureza consciente, reflexiva, o comportamento do homem contribui para a harmonia final do processo evolutivo (da poeira cósmica à vida consciente), mediante o exercício da liberdade responsável nas suas relações interpessoais, e com o ambiente. Eis o seu papel neste processo.
A consciência, coroamento da complexidade psíquica do homem, é, fundamentalmente, intencional e objetiva. Ela está voltada para o mundo que se constitui no objeto da sua atenção. O dinamismo próprio da consciência implica na capacidade de o indivíduo transcender o binômio “sujeito cognoscitivo - objeto do conhecimento”, permanecendo imanente a ambos. Nesta operação subjetiva conserva-se o caráter de totalidade e unicidade inerente ao fenômeno consciente, podendo o homem intervir criativamente no mundo, atuando sobre o ambiente, ou transformando-se a si mesmo. Nesta intervenção a sequência é conhecer para agir. Todavia, para ser responsável a ação escolhida deve estar aferida a critérios de certeza. Ora, todo conhecimento objetivo se circunscreve aos fenômenos, escapando-lhe a essência das coisas. E o conhecimento fenomenológico é sempre aproximativo. Por mais que a ciência fragmente a matéria, não conseguirá conhecer-lhe a essência[2]. Aliás, a essência das coisas não é o objeto próprio das ciências exatas e experimentais. Cabe à Ontologia, tratar da questão do “ser” enquanto “ser”, de forma especulativa, trabalhando conceitos obscuros que resultam da abstração de abstrações, como a noção clássica do “ser em si”. Necessitando de uma âncora confiável para fundamentar os critérios para escolha da ação, no limite entre o mundo fenomenal e a realidade essencial o ser consciente elabora concepções que dão margem a profundas especulações sobre os fundamentos do Universo.  Nos últimos 70 anos, com o aval da Física Quântica, investigações teóricas inéditas, quase apagaram a fronteira entre o espírito e a matéria. Elas (estas investigações teóricas) estão presentes nas afirmações de pensadores e cientistas de renome internacional, e implicam numa revisão da mundividência clássica. Assim se pronunciam pesquisadores eméritos: “A Natureza não pode ser reduzida a entidades fundamentais semelhantes a blocos de construção (tijolinhos) da matéria.” “As coisas existem em função das suas relações mutuamente consistentes.” “O universo material é concebido como uma rede ou teia dinâmica de eventos inter-relacionados. Nenhuma propriedade de qualquer das partes dessa rede é fundamental, todas decorrem das propriedades das outras partes e a consistência global de suas inter-relações determina a estrutura da rede toda.” Essas idéias estão implícitas na teoria segundo a qual, “Todos os fenômenos do Universo são exclusivamente determinados pela mútua auto consistência”. “As partículas são padrões dinâmicos numa rede inter-ligada de eventos”. Assim, “vários desenvolvimentos importantes da teoria da Matriz[3] tornaram possível deduzir resultados característicos do modelo `Quark´[4] sem precisar postular a existência física desta partícula.” “Dessa forma a Física Moderna está abalando o axioma da causalidade linear que tem sido o fundamento da própria Ciência.” Mas nem assim, a Ciência alcança o conhecimento das essências. As citações acima transcritas[5] mostram, porém, como é indecidível [6] o limite entre um “padrão dinâmico” que não tem expressão física (portanto um ser imaterial), e a matéria organizada. As afirmações contidas nas citações transcritas anteriormente descerram a cortina desse mundo ainda misterioso que a Ciência explora tenazmente em busca da Partícula de Deus, o Boson de Higgs[7] que explicaria a “materialidade” mas não a criação do nosso Universo. No meio das incertezas (racionais), atendendo à necessidade de um arrimo “absoluto” para os valores existenciais, suportes da ação responsável, o sujeito da consciência vale-se da intuição (razão) e da fé[8] que são os canais de acesso a uma possível realidade transcendental que  guarda o mistério do “ser”. Para apoiar-se em algo firme, e não cair no desvario diante das “incertezas” que o oprimem, o homem, perplexo, pode escolher a alternativa de cultivar apenas a verdade objetiva, limitada ao mundo sensível, ou assumir a crença nos “imponderáveis[9] que permeiam o mundo visível e a consciência, desbordam as explicações racionais, e ensejam a expectativa de um Dinamismo Absoluto Criativo, objeto de fé. No primeiro caso, em face da angústia existencial suscitada pela consciência da “finitude” incontornável resta adotar uma postura estoica; no segundo caso poder-se-ia alimentar a crença numa transcendência absoluta. É oportuno lembrar que a limitação racional para entender o Absoluto não implica na negação do mesmo. Em verdade, deste, nada se pode afirmar ou negar, do ponto de vista puramente racional. Todavia, através da experiência mística de unidade com o “todo” (absoluto), o homem pode vivenciar a eternidade na perfeição do ser! Místicos famosos dão testemunho de que a rendição da razão diante do mistério do “ser” permite ao homem viver a verdade oculta aos olhos da razão, libertando-o de sua escravidão temporal. O problema prático para alcançar esta conquista é ser a “Fé” um dom a ser cultivado, não havendo pedagogia que garanta a eficácia do aprendizado desta virtude indispensável para a entrega incondicional do ser consciente a uma transcendência incognoscível.  Isto nos leva a reiterar o que já dissemos em outras ocasiões: a resposta ao problema humano é mística, uma vez que a solução definitiva para a existência[10] é a entrega consciente e responsável do “si mesmo” ao absoluto intangível.
                       Everaldo Lopes


[1] O conjunto de características humanas que não são inatas, e que se criam e se preservam ou aprimoram através da comunicação e cooperação entre indivíduos em sociedade. [Nas ciências humanas, opõe-se por vezes à idéia de natureza, ou de constituição biológica, e está associada a uma capacidade de simbolização considerada própria da vida coletiva e que é a base das interações sociais.]  Dic. Aurélio XXI
[2] Aquilo que é o mais básico, o mais central, a mais importante característica de um ser ou de algo.Houaiss3.

[3] Um capítulo da álgebra que estuda módulos de arranjos de variáveis lineares independentes.
[4]  Partícula subatômica de carga elétrica fracionária (2/3 ou 1/3 da carga do elétron) e de spin + 1/2, considerada como um dos constituintes fundamentais da matéria.(Aurélio Sec.XXI)
[5]Procedentes do livro de Fritjof Kapra, “O Tao da Física”.
[6] Um indecidível é uma afirmação que não podemos determinar se é falsa ou verdadeira, independentemente dos argumentos que tentemos usar.
[7] É a única partícula do modelo padrão que ainda não foi observada, mas representa a chave para explicar a origem da massa das outras partículas elementares.
[8] Segundo Unamuno, Miguel, ter fé não é crer no que não se vê, mas criar o que não se vê.
[9]  Elemento ou circunstância indefinível que influi em determinada matéria ou assunto. Dic. Aurélio XXI
[10] Modo de ser peculiar do homem

4 comentários:

  1. Painho,
    Como lhe falei, levei você comigo para a Chamada da Diamantina através dos seus textos sobre a Aventura Humana. Li, nos últimos momentos do ano de 2012, os três primeiros fragmentos que você postou com os títulos “Aventura Humana I”, “Aventura Humana II” e “Aventura Humana III”. Senti-me privilegiada por estar acompanhada de tão boas reflexões naquele último instante do ano que para mim foi permeado de tantos desafios pessoais e existenciais.

    Pensei em lhe escrever ainda quando estava na Chapada, mas a decisão de me desligar das tecnologias incluía todos os tipos de conexões que lembrasse vida urbana e trabalho: telefone celular, computador, internet (facebook, e-mail, blogs), televisão etc.

    Como falei, li os três primeiros textos de uma vez só e tinha pensado em fazer um único comentário para dialogar sobre todos as “Aventuras Humanas” que você postou (até agora somam-se cinco textos). Apesar de existir uma linha de continuidade entre eles, quando sentei agora para relê-los, vi que seria melhor fazer os comentários separadamente, dado a riqueza de suas colocações e o que elas suscitaram para pensar sobre minha própria vida.

    A primeira coisa que me chama atenção em seu texto é a sua insistente lembrança de que, tendo desenvolvido a consciência e a capacidade reflexiva, inscrevemo-nos no mundo como seres de cultura, portanto, responsáveis pelos destinos de nossas vidas e da vida cósmica. Por que acho importante essa sua insistente lembrança? Porque o avanço científico e tecnológico, além de ter intensificado a capacidade produtiva de bens materiais e imateriais, imprimiu uma velocidade em nossas vidas, impedindo-nos de exercermos com plenitude essa dádiva peculiar à subjetividade humana: a capacidade reflexiva e a consciência de ser no mundo.
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  2. Com o desenvolvimento da comunicação interplanetária, a vida passou a girar em torno das informações; e, nesse campo das informações, os fatos do cotidiano ganham o status de notícia, e a notícia tem um tempo de validade extraordinariamente perecível; ou seja, rapidamente nos tornamos obsoletos se não estivermos sintonizados com última notícia que compõe essa “ciranda de informações”. Nesse contexto, a vida útil de uma informação é definida pela dinâmica jornalística que, ao por em evidência outros e outros “fatos”, definem que o mais “importantes” é sempre a nova informação, que destitui a que foi transmitida no minuto anterior. Assim, a memória, a história, a consistência, a continuidade, a permanência passam a ser vistos como algo a ser superado pelo frenesi das mutações culturais que acontecem numa velocidade extraordinária.
    Nesse contexto, a sensação de que a vida se transformou numa corrida desordenada, onde não há marcos regulatórios que definem o tempo de partida e de chegada, não se sabe o tamanho do percurso que será exigido antes de entrarmos na corrida, não se sabe ao certo os critérios para definir os vendedores e perdedores, enfim, onde não se sabe as bases definidoras dos reconhecimentos que serão obtidos por aqueles que conseguirem sobreviver a essa “corrida sem fim”... tudo isso, essa urgência, impede-nos de pensar, de exercer nossa capacidade reflexiva, de levarmos as últimas consequências o que significa estar no mundo, compor essa unidade “consciência-mundo” pelo simples fato de existimos nesse mundo, nesse tempo cósmico.

    Paradoxalmente, a vida humana está sendo reduzida a flashes, como episódios instantâneos que rapidamente são substituídos por outros. Digo paradoxalmente porque a memória está sendo substituída pelos chips que conseguem armazenar vida em termos de mega bits, dimensão infinitamente superior a capacidade humana de armazenamento. A multiplicidade das informações que nos chegam como flashes instantâneos, nos conectando com o todo planeta em tempo real, a imposição da velocidade como um estilo de vida imprimindo uma urgência nas decisões seja no campo dos afetos (família, amizade, amores), seja no campo profissional, impedem-nos de exercer essa conquista civilizacional que você tão bem reconhece em seu texto sobre a Aventura Humana: a capacidade reflexiva e o exercício da liberdade a partir da consciência e da responsabilidade do ser humano consigo mesmo e com o planeta.

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  3. A despeito de não vivermos no cotidiano pensando nessa unidade “consciência-mundo”, de fato, se o mundo é uma rede ou teia dinâmica onde tudo esta interligado, interconectado, mutuamente interrelacionado, não há qualquer ação individual que não repercuta no campo social; imagino que essa é a expressão mais profunda do que você coloca como sendo a “convergência da consciência e do mundo”.
    As desilusões em relação ao alcance da ciência e da tecnologia como caminhos seguros para a conquista da felicidade já foi muito bem refletida pelos frankfurtianos; mas, parece-me que essa notícia não chegou a todos. É preciso mesmo que alguém como você nos lembre os limites dessa objetividade científica, relembre que somos constituídos por um “núcleo intuitivo e racional”. É pela fé, pela razão e pela intuição que podemos acessar a “realidade transcendental que guarda o mistério do ser”. Aceitar os imponderáveis, as incertezas, a finitude, a dimensão visível e invisível da vida, realmente nos exige “desbordar as explicações racionais” apostando no “Dinamismo Absoluto Criativo”. A consciência de que a finitude temporal é incontornável nos leva a pensar que a melhor alternativa é mesmo acreditar numa “transcendência absoluta”, pois, de fato, não dá para acreditar, diante de toda a exuberância da vida e da existência humana, que tudo termina com o apagar das luzes de nosso organismo. Então, é preciso fé e coragem para fazer essa “entrega incondicional a uma transcendência incognoscível”; é para poucos o privilégio de descobrir os ganhos em viver com plenitude o “amoroso desapego a vida”. É preciso mesmo ter coragem para “viver a verdade oculta aos olhos da razão”; mas, a recompensa é libertar-se da “escravidão temporal” que atordoa os que andam em busca de uma saída científica e tecnológica para a finitude do corpo nas clínicas de estética e consumindo as pílulas da juventude e da conquista da felicidade.

    Como você bem falou, a fé não se presta a ser objeto de ensino pedagógico; essa também é a condição do amor. Em outros textos você já mencionou que fé e amor não são passíveis de comandos imperativos, o que pode ser visto pelo absurdo da conjugação: "Ame tal pessoa!" ou "Acredite no que não vê, e tenha fé! Por isso, creio que amar e ter fé são dádivas! Amar e ter fé são condições que escapam ao poder de decisão do ser humano!

    Por fim, gosto de pensar que com razão e intuição podemos ser criativos, temos mais chances de acrescentar algo ao "charme" já existente no mundo.

    Beijo da filha,

    Ruth.

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  4. Filha
    Seus comentários completam o meu texto. Fico encantado com a forma fluente como voce aborda os temas versados, e extremamente feliz ao ler sua exposição compreensiva, clara e consistente.
    Aguardo seus próximos comentários.
    Um beijo do pai.
    Everaldo

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