segunda-feira, 12 de março de 2012

A sabedoria do idoso


Diz-se com certo charme que “ser velho” é um estado de espírito!!! Sob este ângulo, haveria “velhos velhos” e “velhos jovens”. Enquanto os “velhos velhos” estariam empenhados, estoicamente, em assimilar uma realidade ostensiva, problemática, indesejada mas obrigatória... os velhos moços viveriam uma fantasia otimista que não é, necessariamente, ingênua... mas, não sendo ingênua envolve certa melancolia.
É óbvio que para ser vivida sem ressentimentos ou saudade dos anos idos, a anosidade exige um bom preparo psicológico. Perder a força física e os encantos de um corpo jovem implica na reconciliação com um perfil físico “diferente”, concomitante com o redimensionamento do horizonte temporal. Aprendizado que não se alcança sem empenho, autoconhecimento e disciplina emocional. Encerrar a vida profissional, assistir à debandada dos filhos, são lances que demandam alterações de hábitos arraigados de trabalho e de convivência. Isso exige uma reformulação de rotinas longamente praticadas... Conviver com o sentimento de ser descartável, situação cujos desdobramentos variam de acordo com a condição econômica e intelectual do idoso/a, é sempre embaraçoso para os que já viveram mais de dois terços do seu ciclo biológico. Toda esta transição pode ensejar sentimentos de menos valia, ansiedade e até mesmo depressão... mas não inevitavelmente. Em tendo vivido responsável e diligentemente as etapas anteriores da vida, o idoso retém uma reserva moral que lhe garante o respeito dos seus pares e dos demais membros da coletividade. As conquistas intelectuais e afetivas alcançadas no passado dão suporte ao equilíbrio existencial. Assim, é possível viver em plenitude todas as fases do biociclo, inclusive a “velhice”. Lamentavelmente, depois de malversar as possibilidades inerentes a cada estágio da existência, muitos chegam despreparados à assim chamada terceira idade. É evidente que esta malversação não depende exclusivamente da falta de iniciativa individual, mas, também, da ineficácia organizacional da sociedade dispersa em querelas mesquinhas, egoísticas. Porém mesmo os que viveram diligente e criativamente as idades precedentes não estão imunes aos percalços impostos pelo peso dos anos.
Voltando ao enfrentamento da velhice, é admissível que a alienação ingênua das pessoas simples anule ou abrande o desconforto da auto-avaliação física desfavorável depois da quinta década de vida. Mas a lucidez crítica não tem como enfeitar a velhice, a não ser com a sabedoria dos que souberem tirar lições das experiências vividas. É muito subjetivo e duvidoso o critério utilizado pelos que dão à velhice a designação de  “melhor idade”! Não obstante, é forçoso reconhecer que sempre se pode valorizar a existência, no contexto de cada etapa da vida. Mas para evitar qualquer desassossego, é preciso assimilar o amoroso desapego à vida, e aprender a “virar cada página” da existência... conquistas difíceis que demandam equilíbrio emocional e determinação. Quando começamos a sentir a ameaça do pessimismo em relação ao futuro que míngua cada ano transcorrido, é tempo de reavaliar a própria existência e, se necessário, redirecioná-la usando toda clarividência e criatividade.
Afinal nem tudo são perdas! Ser velho implica ter vivido bastante, e superado os obstáculos inerentes às etapas anteriores da caminhada humana neste mundo. Tendo resistido aos sacrifícios e aborrecimentos, medos e insatisfações da juventude e da adultícia, o velho sente-se desobrigado de provar seja o que for a quem quer que seja. Sabe-se que esta confiança é menor quando as etapas anteriores da existência não foram vividas em plenitude. Mas é sempre possível reelaborar, com engenho e arte, sobretudo com bom senso, o luto do não vivido. Há casos em que a Psicanálise seria de inestimável ajuda... É inevitável a saudade dos bons momentos desfrutados no viço da juventude. Mas a memória destes momentos, lembrados sem a pretensão infantil de reproduzi-los, pode representar, apenas, um recreio relaxante... Enfim, cotejando a saudade da vida, com a vantagem de haver superado os percalços da juventude e da adultidade, há um “empate técnico”. Nesta perspectiva, portanto, sem preconceitos, não há como justificar uma preferência... a exaltação otimista da juventude, ou as limitações e virtudes  dos últimos quiquênios da vida... Todavia, mantida a lucidez crítica, convenhamos em que ser velho implica, sempre, ter que lidar com limites físicos sobretudo, uma sentença irrecorrível. Pior quando o velho lúcido não consegue livrar-se da revolta de haver perdido a juventude. Pode-se até associar esta rebelião à imaturidade psíquica afetiva que martiriza muitos idosos! De fato, a incapacidade de aceitar a realidade, objetivamente, é uma deficiência do caráter, mas isto não nega a dificuldade real implícita em viver a transição para a velhice, torna-a, até, mais evidente...
 A sabedoria alcançada pelo idoso pode conferir-lhe certa tranquilidade em razão do domínio da “arte de conviver”[1]. Este conhecimento assegura-lhe autoconfiança, mas, obviamente, não suprime os problemas inerentes à superação das diferenças interpessoais, mais arraigadas entre idosos.
Não obstante todas as restrições, quando lúcido e bem resolvido o ancião esclarecido constitui-se ainda num esteio para a sociedade. Ele já tem mais controle sobre a tirania dos sentidos e das emoções e, assim, tem mais condições de fazer escolhas e de tomar decisões equânimes. Ele sabe quanto é difícil cortar o fio intangível que o mantém atado à escravidão dissimulada dos sentidos conquanto, nesta quadra da vida já estejam perdendo a acuidade... Numa leitura objetiva evolucionária depreende-se que a realização plena da condição humana vincula-se à “espiritualização” progressiva dos sentidos e não à anulação da experiência senciente. Não se trata de sufocar os sentidos como se fossem a parte “podre” da interação do indivíduo com o mundo e com os outros. Esta questão já foi ventilada no texto anterior.[2] No contexto de uma cosmogonia espiritualista, a sensualidade é um desdobramento do Dinamismo Absoluto eternamente criativo, penhor da dignidade humana, da nobreza do autorrespeito que se prolonga no respeito ao outro e à Natureza... uma linha comportamental na qual se desenvolve a solidariedade comunitária pela qual se revela o amor doação. Sob sua inspiração tudo se ilumina nas relações interpessoais, não restam desvãos escuros onde a maledicência e os equívocos encontrem guarida. Tudo acontece espontaneamente, sem premeditação, reproduzindo o equilíbrio dinâmico universal. O estado de graça que todos almejamos não é mais do que a vivência deste amor despojado, de quem não pensa apenas em si, e se ocupa com o bem estar do outro. Este amor caridade é o ápice da maturidade humana, a manifestação mais conspícua da presença no homem de uma dimensão transcendental, dado que não há como atribuir o amor caridade a uma função biológica. No embalo desse ideal, é possível em qualquer idade buscar o equilíbrio pessoal nas relações intra e intersubjetivas. A sabedoria almejada está na profundeza do ser consciente. Assim a jornada em busca da realização da “imensa aspiração de ser divino”[3] corresponde a uma introspecção inteligente e humilde.
No âmbito da cosmogonia espiritualista, um Dinamismo Absoluto Eternamente Criativo (Deus) está presente em cada uma das suas criaturas desde o início e para todo o sempre... incapazes de subsistir por si mesmas é o seu próprio Criador que as sustenta, e é a Ele que retornarão... no caso do homem, depois de dar o testemunho histórico da Sua grandeza ao experimentar o “supremo prazer de ser humano.”[4]
Até mesmo quando desestabilizado pela luxúria e pela insegurança existencial, o homem não perde o foco do objetivo maior de integrar uma totalidade absoluta. Não consegue imaginar sequer a grandiosidade desta plenitude, mas não desiste dela, mesmo quando rasteja nos equívocos que dela o afastam... vislumbra-A como uma visão beatífica da comunidade de todas as consciências na unidade absoluta de Deus. Humilde, mas sequioso de integração no absoluto, despedir-se-á, honrosamente, desta vida, repetindo as últimas palavras de Cristo no madeiro: “Senhor, tudo está consumado, em Tuas mãos entrego a minha alma.”
Everaldo Lopes


[1] Ver texto com este título, já  postado neste blog.
[2] Sublimação da libido
[3] Ver a citação de Raul de Leoni no final do texto anterior.
[4] Idem

4 comentários:

  1. Painho,

    Seus textos estão me convencendo que os mais aptos a falar sobre os efeitos da senilidade são realmente os que estão vivenciando essa quadra da existência. Qualquer palavra que eu diga em torno dessa questão pode parecer uma avaliação precipitada e imatura, ou uma análise distante e desconectada da realidade.

    Estamos de acordo quanto aos possíveis ganhos advindos com o envelhecimento: a sabedoria construída a partir do acúmulo das experiências vividas; a possibilidade de assimilar o verdadeiro sentido do amoroso desapego à vida; a desobrigação de "provar seja o que for a quem quer que seja"; poder desfrutar o "controle sobre a tirania dos sentidos e das emoções", tendo condições de "fazer escolhas e de tomar decisões equânimes"; estar apto a exercer o amor caridade como o ápice da maturidade humana. Essas são possibilidades plausíveis; mas, sabemos, nem todos os idosos serão capazes de desfrutar desses ganhos, fazendo desse tempo da vida um tempo de realização existencial. Não são poucos os idosos que perdem a memória, que adoecem e ficam absolutamente dependentes dos cuidados dos outros para garantir sua sobrevivência, enfim, que vivem a velhice como um "castigo" e não como um privilégio.

    Concordo que as perdas estéticas podem ser ferinas para o idoso; podem causar muita dor e desassossego, particularmente em nossa sociedade que elegeu o novo, o belo e o jovem como padrões de beleza e condição de realização pessoal. Ser jovem passou a ser o sonho de consumo de todas as gerações: crianças, adultos e idosos.

    Sem querer romancear nem enfeitar essa etapa da existência, reconheço que tenho um olhar todo especial para os idosos. Tenho uma disposição afetiva para ouvi-los, acolhê-los, enfim, de ficar atenta para descobrir a sabedoria que cada um deles pode trazer em seus relatos de vida. Certamente essa visão que guardo dos idosos deve-se aos idosos que compõem a minha história. Cresci convivendo com os idosos da Rua Djanira e lembro como eles vivenciaram o envelhecimento de forma tranquila, até com certa resignação. Talvez eles tenham ficado silenciosos quanto aos sofrimentos advindos com o envelhecimento, porque não tinham coragem de evidenciá-los. Mas, o mundo mudou! Alguns idosos sentem-se fortalecidos para expor e dar visibilidade às angústicas e sofrimentos produzidos pela senilidade. Esse é um ganho social importante, a despeito de não termos instrumentos para reverter a transitoriedade e finitude que marcam a condição humana.

    Painho, está se avizinhando o meu tempo de ser idosa. Acredito que seus textos são valiosos para que eu não chegue lá desavisada. Mas, em todo caso, quero acalentar o sonho de viver uma velhice saudável, calma, tranquila, alegre, produtiva e, principalmente, aberta ao aprendizado. Quero puder desfrutar os efeitos de viver um "amoroso desapego à vida".

    Minhas bênçãos para você! Espero receber as suas bênçãos também!

    Beijo no coração, da filha,

    Ruth.

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    1. Filha
      Se conseguirmos arrimar-nos um ao outro na caminhada existencial, poderemos exultar porque nossas vidas ganharão sentido nesta comunhão espiritual que há de transpor o horizonte histórico, eternizando-se.
      Um beijo do pai.
      Evraldo

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  2. Irmão Mergulhador,

    Suas reflexões mexem com minhas palavras a ponto de deixá-las inquietas...retiram o meu silêncio e dão, às minhas mãos, coragem de partir para o papel.
    Bordei, com as inquietações que seus mergulhos me provocam, um pequeno tecido de poema para dá-lo de presente a você. Um singelo texto, é bem verdade...mas feito com um grande carinho e gratidão.

    Ao Meu Irmão Mergulhador,

    Quando mergulhas tão profundamente, a noite cala, ciente de tua busca.
    Ó incansável fôlego que desvenda matérias tão sutis...teu nome é Coragem, travestido de escafandro de palavras...
    Seus versos não turvam a maresia, mas despertam as conchas que dormitam ao fundo dos oceanos...
    Onde aprendestes habilidades tais que vejo Netuno contemplar tuas braçadas de caçador, tuas doces flutuações?
    Da margem a qual me encontro, posso ver que não vais sozinho...tens uma mão pequenina a quem sempre ensinastes a nadar...Mergulhador pai, aprendiz filha...um e outra tornando os mares companheiros tão azuis...
    Metamorfoses de amor, encontros de vida, marinheiros de sede...
    Para onde desejas ir se te espreito tão repleto de águas, irmão que não conheço? Tens lagos inteiros nas palavras e rios caldalosos de inquietações...
    Sabes...daqui, da beira do mar, lugar onde finco os pés, pareces tão menino, a brincar e a nadar nas praias de todas as memórias, no doce espumar de todos os profetas...menino mergulhador com os olhos mais profundos que já vi.
    Irmão...
    És mar e mergulho...a dançar nos olhos meus.

    Um abraço, com carinho,obrigada por existir,
    Sua Irmã Mergulhadora.

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  3. Irmã mergulhadora.
    Não há maior presente para quem escreve do que ouvir de uma alma irmã os ecos da leitura inteligente e sensível do seu texto. Presente que ganha a beleza de uma joia quando se traduz em poesia reveladora de um espírito lúcido e sensível capaz de transmitir no simbolismo do verso o que a prosa não consegue dizer.
    Ao emergir de um mergulho, vendo-te na praia ao longe, acenando, certifico-me de que não perdi o rumo, flutuando no mar imenso, depois do mergulho aventureiro.
    Revitaliza-me saber que algumas “conchas” despertam com o deslocamento submarino do meu mergulho, e, quiçá com os ruídos molhados das minhas braçadas na suoerficie.
    Sou grato por haveres quebrado o silêncio e “partido para o papel.”
    Um abraço afetuoso do teu irmão mergulhador.
    Everaldo Lopes.

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