A autenticidade existencial e o vínculo comunitário.
Do ponto de vista evolutivo é admissível que os símbolos[1] presentes no “inconsciente coletivo”[2] sejam a linguagem cifrada da passagem crítica da atividade neuronal cerebral integrada, para o estado de consciência reflexiva que marca a emergência do homem, ou seja, de um ser consciente, livre e responsável.
Estes símbolos representam a intimidade da condição humana com os estágios primários da psique animal. Sobre eles se estratifica a consciência individual que evolui através do processo da “individuação”[3]. Assim, o modo de ser peculiar do homem (a “existência”) fundamenta-se no exercício da consciência individual livre e responsável.
Neste nível, a concordância entre a formalidade do comportamento e sua consistência intelectual, afetiva, e volitiva é o sinete da autenticidade. O gesto amoroso, apenas, sem o background existencial, não basta... não realiza o milagre do amor genuíno - sentimento complexo e arrebatador que é a senha para acesso à plenitude existencial das interações humanas.
A maturidade intelectual e afetiva da relação intersubjetiva se constrói ao longo do processo da individuação. Processo no qual se cruzam e integram a espiritualidade e a dinâmica psicológica. A espiritualidade é o elo entre a história que escrevemos com nossa “existência temporal” e a extensão transcendental da “existência”, centrada na eternidade do Espírito (“Consciência Universal”)... Está vinculada ao processo de humanização implícito na descoberta progressiva e assimilação vivencial dos “valores existenciais”[4] que sintetizam as dimensões objetivas e espirituais do homem, comprometendo-o por inteiro, razão, sentimento e vontade, no exercício da consciência responsável. Na sequência dos estádios evolutivos da “individuação”, a resposta pessoal às necessidades do “outro” evoluirão, idealmente, da indiferença à solidariedade. Desta forma, na melhor hipótese, a individuação sedimentará os estágios progressivos dos elementos intelectuais e afetivos das relações humanas, tornando o indivíduo mais flexível, tolerante e compreensivo. O amor reúne todas estas potencialidades virtuosas, sintetizando-as num sentimento sutil de integração. Porém o amor, tal como a fé, não é algo que se imponha ou ensine a alguém. O amor e as demais virtudes teologais (fé e esperança) são dons. Obviamente, todos os homens carregam a predisposição para exercitá-los como dotes que precisam ser cultivados, diligentemente, desde as suas manifestações mais incipientes. Estas manifestações são estimuladas na infância através do convívio familiar amoroso e “verdadeiro”... e desenvolvidas na idade adulta mediante o esforço assimilativo do respeito à pessoa do “outro”. O cultivo das práticas virtuosas requer empenho criativo e compromisso que demandam do indivíduo a determinação necessária. Quando falta o entusiasmo inerente ao exercício deste compromisso existencial, abre-se espaço para o comportamento ético baseado no dever, ou seja, na prática obrigatória dos valores que honram a dignidade do ser consciente. Mas o dever não gera amor, embora mantenha a ordem social.
No processo de individuação, todavia, recorre-se frequentemente à prática valorativa de preceitos normativos impostos pelo medo da punição, ou pelo “suborno”, mediante a promessa de vantagens materiais, e até da salvação eterna. Este recurso leva a um comportamento ético, ou religioso, estruturado no dever... Diferente da conduta ontologicamente estruturada no amor.
Em verdade, o comportamento humano autêntico fundamenta-se no sentimento amoroso indissociável da solidariedade entre os homens. Neste contexto, a conduta ética flui como uma decorrência linear da natureza humana. Mas uma vez que não se pode ensinar a amar, o catecismo humanista deverá enfatizar a “compreensão” dos limites da condição humana, e a constatação de que a solidariedade comunitária é indispensável para a mais completa realização pessoal. Entendendo profundamente o papel da condição humana no processo evolutivo, as pessoas se darão conta da necessidade de estabelecer relações intersubjetivas verdadeiras em que o “eu” e o “tu” se integram na complementaridade recíproca do “nós” que os une no mesmo destino histórico. Se forem convencidas de que a solidariedade é condição sine qua non para a sobrevivência da espécie humana, as pessoas reconhecerão que sem os “outros” não sobrevivem, e serão induzidas a abrir mão do egoísmo suicida, em prol da convivência comunitária.
Quando existe amor, o gesto generoso é espontâneo e existencialmente rico. Inspirado pelo dever, o mesmo gesto nobre é válido de imediato pelas consequências sociais positivas que produz... mas só a longo prazo, a repetição do comportamento generoso, torna o doador uma pessoa melhor, envolvendo-o em interações humanas peculiares, estimulantes da fraternidade. Desta forma, é provável que o comportamento ético acabe produzindo ressonâncias pessoais naqueles que insistem, por “obrigação”, na pratica de comportamentos magnânimos.
Tendo em vista o egoísmo natural do homem, é necessário o direcionamento da vontade no sentido da prática “solidária” em relação às necessidades do “outro”. A compreensão de que todos somos capazes das melhores e das piores coisas nos torna menos pretensiosos e une mais as pessoas. Cônscios da fragilidade existencial, e da necessidade racional de adesão a uma ética inclusiva, mesmo que nos faltem as virtudes essenciais vale a pena insistir na prática da verdade e da justiça. Compreendendo a história e as fraquezas do outro podemos repudiar os seus equívocos comportamentais, sem, contudo, amaldiçoá-lo, negando-lhe o perdão. Não faríamos jus à dignidade que nos confere a condição de seres conscientes e responsáveis, se não respeitássemos a dignidade pessoal do “outro” e sua capacidade de recuperação. Todavia, a postura correta demanda elaboração pessoal, não emana sem esforço. Portanto, o empenho em compreender o outro e tratá-lo tão generosamente quanto possível torna-se, no mínimo, uma obrigação para o ser consciente e responsável. Seguindo este caminho o homem pode finalmente assumir o comportamento solidário, comunitário, indispensável à sobrevivência da humanidade, mesmo que não esteja empolgado pelo amor que redime.
Assim, à falta da solidariedade amorosa, a abordagem intelectual especulativa centrada na verdade e na justiça social constitui-se em base sólida para uma prática ética racionalmente concebida, que podemos considerar uma forma incipiente de amar.
O primeiro passo, como vimos, é o reconhecimento da pobreza existencial, comum a todos os homens. Uma vez conscientes da precariedade da condição humana é de esperar que percamos as carapaças egóicas durante o percurso da jornada existencial, purificando o sentimento de fraternidade no convívio responsável com os outros no mundo.
Define-se assim um fundamento racional para as relações interpessoais solidárias que sedimentam os vínculos comunitários[5]. Na trilha da “compreensão” que se pode considerar como um marco elementar da convivência amorosa, precisamos estar de bem com nossa própria fragilidade, sem ódios ou ressentimentos, para acolher o próximo, compreensiva e empaticamente. Numa perspectiva espiritualista diria: Afinal somos todos “Um” na unidade comunitária de todas as consciências... Ideia que resume a presença de um “dinamismo absoluto eternamente criativo” (Deus), misteriosamente, imanente e transcendente no próprio homem e no mundo... verdade de fé que a razão, todavia, pode tangenciar amparada em especulações coerentes.
Everaldo Lopes
[1] Aquilo que, por sua forma ou sua natureza evoca, representa ou substitui, num determinado contexto, algo abstrato ou ausente:
[2] Parte do inconsciente individual que procede da experiência ancestral e transparece em certos símbolos encontrados nas lendas e mitologias antigas, constituindo os arquétipos. (Aurélio sec.XXI)
[3] Processo por meio do qual uma pessoa se torna consciente de sua individualidade, de acordo com C.G. Jung (1875-1961) (Houaiss, dic.)
[5] Agrupamento que se caracteriza por forte coesão baseada no consenso espontâneo dos indivíduos. Houaiss.
Painho,
ResponderExcluirCoincidentemente, acabo de reler um texto em que a autora (Maria Laurinda Ribeiro de Souza), discutindo a violência, argumenta o quanto é pertinente pensarmos que a inscrição do sujeito no campo da cultura e sua adesão ao projeto civilizatório constituem o único caminho para criarmos uma alternativa à barbárie. Amparada em Freud, afirma que o caminho mais seguro para o fortalecimento dos vínculos sociais (comunitários), contrários à guerra, é a constituição de "laços amorosos e identificatórios" entre os sujeitos. Para ela, o projeto civilizatório funda-se, e se viabiliza, no "fortalecimento da razão", na "renúncia às pulsões" e na "interiorização das inclinações agressivas" dos seres humanos.
Quando você se refere ao "milagre do amor genuíno" como uma "senha" de "acesso à plenitude existencial das interações humanas", acredito que está em sintonia com essas teses freudianas.
É realmente surpreendente a capacidade humana de praticar a indiferença e, em igual medida, de praticar a solidariedade. Nesse sentido, sua reflexão reforça o que afirma Maria Luarinda: "o psiquismo é o lugar da coexistência de opostos - da virtualidade do bem e do mal e não a morada absolutista de uma força única; seu destino é uma mescla imprevisível desses opostos". E acrescenta: "o homem raramente é integralmente bom ou mau; quase sempre é 'bom' em certa relação, 'mau' em outra, ou 'bom' sob certas circunstâncias e 'mau' em outras" (Souza, 2005, p. 49).
Assim, concordo que através do amor o ser humano pode fortalecer sua potencialidade de ser "mais flexível, tolerante e compreensivo"; mas, como você mesmo alerta, o sentimento amoroso não se impõe nem se ensina. O amor, nesse sentido, é um privilégio ... eu diria, um milagre.
... continua
Sim, acredito mesmo que o amor não seja uma matéria de ensino pedagógico e acadêmico ... não ensinamos ninguém a amar. Mas, certamente, podemos dizer que a condição para sabermos amar é termos sido amados por alguém, termos sido reconhecidos, cuidados, acolhidos e atendidos em nossas necessidades afetivas e existenciais.
ResponderExcluirQuem nunca recebeu ou experimentou o sentimento amoroso terá mais dificuldades de ser amoroso; mas, isso não o torna incapaz ... de amar.
O ser humano é capaz de superar, sublimar e suplantar as dores da existência. Mas, acredito que a experiência do amor torna-se muito mais rara para aqueles que jamais foram amados, reconhecidos, acolhidos e respeitados. Veja: o saber popular diz: “é dando que se recebe” ou “colhemos o que plantamos” ou “só posso dar o que recebo”... há uma sabedoria nessas palavras ... pois, se sou negado em minha condição humana, desrespeitado em minha dignidade, se sofro cotidianamente maus tratos, humilhações, injustiças, desprezo e abandono; se a vida para mim é só dor e sofrimento, fica muito mais difícil de vivenciar a nobreza do amor.
Estamos vivendo num tempo muito estranho de desamor e indiferenças. A insensibilidade, a apatia e o descompromisso com o outro tem sido uma tônica assustadora. Nesse sentido, acredito que precisamos apostar na adesão social ao campo dos “direitos e deveres”. Mesmo sabendo que o dever não gera o amor, podemos pensar que o dever pode gerar o respeito social e interpessoal. O dever pode, sim, gerar “consequências sociais positivas”; e se fizermos isso, já estaremos evitando muito sofrimento em nossa sociedade.
Penso, como você, que é “necessário o direcionamento da vontade no sentido da prática “solidária” em relação às necessidades do ‘outro’ ”. É preciso despertar na sociedade, nos vários segmentos sociais, a “necessidade racional de adesão a uma ética inclusiva”. Concordo que a valorização da “prática da verdade e da justiça” podem se constituir caminhos seguros para a evitação dos “equívocos comportamentais” e o aprofundamento da miserabilidade humana.
Quanto à prática do perdão... entendo que esta pode ser a maior prova de amor que podemos dar a alguém. Você tem razão: “o empenho em compreender o outro e tratá-lo tão generosamente quanto possível torna-se, no mínimo, uma obrigação para o ser consciente e responsável”. Os caminhos para construção de uma “ética da responsabilidade” ainda está por ser pavimentado e construído. O desafio é enorme; mas, o “amor move montanhas”...
Beijo carinhoso da filha,
Ruth.
Filha.
ResponderExcluirBom saber que minha forma de ler a realidade coincide com o pensamento de alguém com as credenciais acadêmicas que não possuo. Agradeço a informação veiculada pelo seu comentário. Sem sua intermediação eu continuaria ignorando o trabalho de Maria Laurinda Ribeiro de Sousa.
Na próxima postagem vou fazer alguns comentários em relação às especulações I,II e III, amarrando algumas idéias que ficaram soltas. Neles tento, também, algumas pinceladas nos desdobramentos místicos das “especulações” o que, certamente, é muito arriscado para quem pretende manter a objetividade das discussões...
Continua firme no propósito de vir a Campina Grande este fim de semana?
Sempre me encontro com Renatinha no Facebook.Sinto-me importante com os mimos que ele me faz nos seus pequenos comentários.
Um beijo do pai.
Everaldo
Painho,
ResponderExcluirConfirmado nosso encontro no próximo sábado!
Beijo da filha,
Ruth.