sábado, 16 de abril de 2011

A violência em debate


É assustadora a estatística de assassinatos divulgados pela mídia. A recente chacina em uma Escola Pública de Realengo, chocante por vitimar crianças, adolescentes, e pelos detalhes perversos confirma o nível de violência a que chegamos.
Atônitas, as pessoas sentem-se inseguras, invadidas pelo medo, imaginando riscos. No açodamento do primeiro impacto das notícias deprimentes, a população arrisca opiniões sobre as causas da violência. Há um pouco de verdade em cada uma das causas levantadas pelo povo. A deficiência do aparato policial, a morosidade do ministério público no julgamento e punição dos culpados, a frouxidão administrativa e a corrupção dos governantes, a omissão da coletividade por medo de ficar na mira de bandidos impiedosos, a descrença num poder maior justo e infalível são fatores favoráveis à criminalidade... mas nenhum é determinante, por si só. Por trás de todas as causas elencadas está a problematicidade do homem e sua implicação na irrupção da violência.
A emergência da consciência, coetânea da liberdade representou o salto evolutivo mais importante na história da vida, implicando ambas no exercício da responsabilidade. A partir deste salto a Evolução já não dependeria mais de determinismos físico-químicos e feedbacks biológicos, mas de escolhas livres do homem. O vetor evolutivo não seria mais o aperfeiçoamento biológico, mas a organização de uma sociedade solidária... cabendo ao homem construí-la mediante escolhas pessoais. Mas no próprio homem há uma carência ontológica refletida na consciência de que não é o autor da vida... Numa introspecção profunda esta carência é percebida como um “vazio” - a “falta” original.  Todavia, o homem está condenado a realizar-se, assumindo total responsabilidade ao edificar uma base (concepção de si mesmo) para o seu “vir a ser”, inextrincavelmente ligado à organização social.
Como um ser querente e livre o homem tem um comportamento imprevisível. Cabe-lhe aferir suas escolhas por um valor universal capaz de dar “sentido” à “existência” pessoal... Não um qualquer,  mas um sentido  abrangente que enobreça o universo humano, integrando-o num todo absoluto, significativo. Isso faz toda diferença no comportamento social, sabendo-se que na subjetividade humana se digladiam um selvagem e um poeta... Portanto, a existência se estrutura mediante determinação volitiva que demanda permanente disciplina (autocontrole) e autoconhecimento para o desempenho equânime e coerente do indivíduo na coletividade. Esta postura se reflete no comportamento individual por onde começam tanto os males que põem em risco a humanidade, quanto a iniciativa que a redime da derrocada fatal. O homem é a porta de entrada dos novos dados a serem processados na “individuação”[1] e socialização[2] que caminham juntas no processo cultural.
Considerando toda complexidade que envolve a existência, não se pode pôr o dedo em cima de uma causa específica para a violência praticada pelo homem contra seu semelhante. Mas podemos dizer com segurança que não há uma causa dominante. É mais provável que todas estejam implicadas e se permutem influências entre si. Nessa dinâmica psicossocial, equívocos acumulados durante milênios levaram à prática de comportamentos destoantes do ideal solidário. Séculos seguidos, a Humanidade vem dissipando suas potencialidades existenciais associativas na embriaguês da ira, avareza, luxúria, preguiça, soberba... mas, ao mesmo tempo, proclamando veleidades éticas. Desta orientação cínica, já não pode o homem tirar o alimento espiritual para uma existência plena de “sentido”, e sem este “sentido” assume atitudes radicais e dispersivas para sufocar a angústia existencial, aturdindo-se. Desorientado, o homem se perde em sua própria insensatez. A análise crítica da conjuntura histórica atual deixa no ar a dolorosa impressão de que, por leviandade e improbidade, o homem está ignorando o sentimento comunitário presente no inconsciente coletivo.  E sem este sentimento a humanidade vira uma horda.
Tragédia como a chacina de Realengo é um sinal de alerta. Ninguém se iluda. Estamos vivendo um momento crítico na História da Humanidade. O organismo social apresenta sintomas evidentes de desequilíbrio. É inquietante a defecção das autoridades diante da violência assassina. Sem recursos institucionais para enfrentar a causa profunda da violência, apontam o desarmamento geral como uma maneira de prevenir futuros episódios igualmente criminosos e deploráveis! É evidente que esta medida não atinge as causas determinantes da criminalidade! É até ingênua porque a indústria de armas envolve bilhões de Reais e, uma campanha antiarmamentista está fadada ao fracasso por ferir o interesse de investidores ávidos de lucro.  Por outro lado é importante saber que o problema da violência não se resolve mediante campanhas deste tipo, nem através de medidas policiais e jurídicas; a solução se configura como um longo processo educacional de treinamento das pessoas na prática da solidariedade.
É tempo ainda de impedir o desastre. Comecemos já a cultivar a solidariedade, por mais hostis que sejam as circunstâncias. É preciso dar crédito e deixar vir à tona a solidariedade arquetípica inserida no inconsciente coletivo. Concomitantemente se fará a mudança dos paradigmas culturais atualmente caracterizados pela competição (aética muitas vezes) e pelo acúmulo de bens. Esta orientação, além de determinar a diferença flagrante e injusta das condições de vida entre ricos e pobres é lesiva à dignidade pessoal porque cultiva a prioridade do “ter”, em detrimento do “ser”. No mundo do “ter” tudo tem um preço, inclusive a “pessoa” que se torna objeto de manipulação. Daí ao desrespeito à vida humana, e à banalização da morte é apenas um passo.
A grande mudança ocorre a partir da adesão a uma visão holística da realidade, que prioriza o “ser”, e parte do princípio que o todo (comunidade) é maior do que a soma de suas partes (indivíduos) mutuamente solidárias, sob os paradigmas culturais da cooperação e da partilha. A dificuldade inerente à mudança radical dos padrões comportamentais justifica a descrença de muitos. Perseveramos, porém,  em persegui-la (a mudança), confiando em que o homem será capaz de superar-se para cumprir a missão evolutiva que lhe está destinada! Para os incrédulos esta é uma leitura ingênua da realidade; para nós, porém, é mais do que uma opção de confiança infantil nas forças vivas da Evolução. Fundamenta-se numa releitura da Psicologia Profunda[3], e do significado epistemológico da experiência original da horda humana. No período pré-histórico em que o homem vivia da cata de frutas e da caça, exposto aos riscos da vida selvagem, a associação dos indivíduos em prol de um objetivo comum foi decisiva para a sobrevivência da espécie. Esta experiência deixou marcas arquetípicas no inconsciente coletivo. Certamente foi a primeira experiência na qual a horda humana viveu um tipo, ainda tosco de organização social. Experiência tão forte e decisiva na história da Evolução, que deixou um arquétipo impresso na imagística inconsciente, origem semântica do que chamamos solidariedade. O potencial solidário nunca nos abandonou, mas ficou soterrado pelas facilidades surgidas com o domínio da Natureza, pela Ciência, que deu lugar à pseudo-suficiência do homem moderno, cercado por tecnologia avançada, cada vez mais voltado para si mesmo. Todavia, o arquétipo solidário aflora espontaneamente nas situações de risco, para defender a integridade dos indivíduos e o seu território, ou para atacar o inimigo comum. Disso temos exemplos numerosos na História da Humanidade.
A violência urbana desenfreada e o desequilíbrio ecológico induzido por ações irresponsáveis do homem estão sinalizando um risco sério para a sobrevivência da espécie e, mais uma vez, tal como no passado, a união dos homens será a salvação. A exposição midiática dos problemas ecológicos e do escândalo da fome mundial demonstra que o núcleo arquetípico da solidariedade já foi despertado e já começou a operar silenciosa e até explicitamente, urdindo novos caminhos para a História do homem. Num momento qualquer este trabalho subterrâneo da Evolução em marcha se tornará visível e o homem começará a viver a aurora radiosa de novos tempos de entendimento e paz comunitária.
Tendo em vista o potencial criativo do homem, no limiar deste terceiro milênio, malgrado os equívocos acumulados podemos pressagiar um futuro de plenitude para a Humanidade... Temos conhecimento e tecnologia suficientes... Faltam apenas decisões políticas sábias. Crendo nessa possibilidade influiremos, decisivamente, na dinâmica histórica criando as condições para que se torne realidade a “paz comunitária” que tanto almejamos.  Não há certezas absolutas quanto ao nosso porvir... Mas, a análise da Evolução oferece bons motivos para apostar na plenitude do ser humano, contra o pessimismo de todos os indicadores disponíveis.
            Everaldo Lopes


[1]Processo por meio do qual uma pessoa se torna consciente de sua individualidade, de acordo com C.G. Jung (1875-1961) Dic. Houaiss 3

[2] Ação ou efeito de desenvolver, nos indivíduos de uma comunidade, o sentimento coletivo, o espírito de solidariedade social e de cooperação. Dic. Houaiss 3

[3] Implicada na teoria dos arquétipos e do inconsciente coletivo.

5 comentários:

  1. oi pai,

    Uma palavra animadora diante do quadro de violência no qual estamos imersos.

    Muito obrigada pela postagem!

    Bjos

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  2. Filha.
    Escrevi esse texto imbuído da idéia de que somos responsáveis por nós mesmos e protagonistas da História. Cabe-nos criar as condições para alcançar nossos objetivos. E para tanto é necessário crer no que fazemos a fim de atualizar o ideal a que aspiramos.Concordo com Unamuno quando diz: "crer é criar o que não se vê!"
    Beijo do pai.
    Everldo

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  3. "...a frouxidão administrativa e a corrupção dos governantes..." aliado ainda à impunidade destes, o que gera esta crise de ética que vivemos!

    Que prazer ler um texto como este!

    Fábio Piquet da Cruz

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  4. Fábio.
    Obrigado pelo comentário. Sua observação final é um estímulo valioso.
    Abraço.
    Everaldo

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  5. Painho,
    O enfrentamento da violência constitui-se num dos maiores desafios para a sociabilidade contemporânea. A fragilidade dos laços sociais que presenciamos na atualidade é um sintoma da erosão dos valores e do esgarçamento do pacto social em defesa da vida. O não reconhecimento do outro como um sujeito portador de direitos inalienáveis, resulta numa cultura do aniquilamento, tal como estamos vivenciando hoje. O processo educacional (familiar e formal) é o caminho para recomposição do campo simbólico que possa valorizar os sentimentos de lealdade, solidariedade, confiança, reciprocidade, respeito e responsabilidade. Não há outro caminho! Sem ingenuidade, reconhecendo a complexidade da empreitada que teremos que enfrentar, seu texto aponta um caminho bastante razoável para reatarmos o nó cultural em defesa da vida, da coletividade, da solidariedade, etc. Reconhecendo que em cada um de nós existe um poeta e um selvagem, precisamos encontrar razões para fortalecer nossas capacidades construtivas, abandonando as destrutivas comandadas pelas pulsões de morte constitutivas de nossa subjetividade. Temos que apostar no potencial criativo do ser humano; precisamos valorizar as experiências positivas já experimentadas pela humanidade para acreditarmos que temos possibilidades de aderir a um ideal cultural pautado em valores e crenças humanitárias.
    O velho Freud já havia nos alertado, há muito anos, que o único caminho para evitar a naturalização da morte violenta é "o fortalecimento dos laços amorosos e identificatórios" entre os sujeitos no espaço social. A "gestão dos conflitos", inscritos nos campos psíquico e social, é uma tarefa permanente, um desafio para todas as culturas.
    A mediação simbólica das pulsões de vida e de morte, que constituem a subjetividade humana, pressupõe o reconhecimento da alteridade. Vivemos um estranho e infeliz momento onde a violência se inscreve como expressão do "fracasso da palavra". A erosão do campo simbólico, o não reconhecimento e a aniquilação do outro como um sujeito de direitos, resulta, inevitavelmente, em ações violentas. Foi o que fez o jovem carioca! Rompeu e ultrapassou os limites do simbólico, e revelou a todos nós o quanto temos responsabilidade pela manutenção da ordem da cultura, dentro de referenciais civilizatórios. Sem a cultura somos "bestas feras". Não é à toa que o clássico dizia que no estado de natureza "o homem é o lobo do próprio homem". Cuidemos, então, de construir o que talvez nunca tenha sido construído em nosso país: uma cultura que respeite os direitos humanos e que de fato tome como norte os parâmetros civilizatórios para o fortalecimento dos laços sociais.
    Beijo da filha,
    Ruth.

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