terça-feira, 4 de janeiro de 2011

O valor dos papeis sociais

O valor dos papéis sociais.
No dia a dia todos encenamos papeis essenciais à dinâmica social. A prática de esquemas comportamentais apropriados disciplina as relações sociais e funcionais entre os membros da coletividade, seja o exercício de protocolos que garantam a harmonia no convívio humano, sejam atividades profissionais que preencham funções importantes para o bem estar da coletividade. Por exemplo, diante das doenças que afligem o homem, médicos, enfermeiras e atendentes desempenham os papéis que o paciente, seus familiares e a sociedade esperam deles. O mesmo se diga dos papéis atribuídos ao pai, à mãe, aos irmãos, em relação às expectativas comportamentais no seio da família. É longa a relação dos papeis interpretados no cotidiano por líderes ou liderados nas diversas atividades humanas.
Mas é preciso lembrar sempre, que por trás de cada representação há uma pessoa cujos dotes definem a performance do papel que lhe é atribuído... Rigorosamente, é sua originalidade que molda o desempenho do papel, e não o contrário.   O melhor desempenho ocorre quando a pessoa investida de um papel específico está disposta a doar-se ao representa-lo. Quando o eu agente não se doa, apenas encena um conjunto de ações vazias de compromisso efetivo com o bem-estar do outro e, deste modo, pode até servi-lo, mas, alienado e empobrecido interiormente...  É possível que nem se dê conta da alienação em que incorre... e se o percebe é complacente consigo mesmo, numa tentativa infantil de valorizar a auto imagem.
Os papeis culturalmente codificados são uma garantia da estabilidade social e ajudam a transpor o fosso existencial que separa um indivíduo do outro, quando não flui mútua simpatia.
Ao identificarem a dinâmica psíquica que preside a distinção do comportamento formal e da conduta existencialmente consistente, as pessoas aprendem a ser mais tolerantes. Compreendendo a fragilidade do comportamento imaturo dos que se atêm à formalidade, (des)dramatizam conflitos existenciais, latentes, com seus interlocutores... tentam passar-lhes uma mensagem de maturidade (geralmente sem sucesso), e deixam-nos viver a própria escolha... a vida os ensinará... lamentavelmente, da forma mais dolorosa. E nos momentos em que falta inspiração para inovar, ou para lutar contra situações adversas, os mais conscientes dos próprios limites sabem usar os papéis que lhes cabem, com eficiência... nesta entrega encontram o sentido existencial do seu momento, e desta forma ficam imunes à perplexidade ou ao marasmo. Porém sempre alertas, para não se deixarem fixar na mediocridade dos lugares comuns.
Poder-se-á sempre agir de maneira crítica, desde que se representem os papeis assumidos sem perder de vista que a verdade pessoal está contida no self[1], instância profunda da psique, e não no ego[2], mais superficial, que absorve os papeis a serem representados... Cria-se assim uma distância virtual, subjetiva, que permite ao “eu agente” analisar a situação e flexibilizar o comportamento, evitando conflitar com os obstáculos ao bem comum, sem perder o foco do ideal perseguido... sabendo ser o papel desempenhado naquele momento apenas uma janela de comunicação, talvez a única em determinada conjuntura. Assim fazendo, o indivíduo preserva a sua verdade singular sem prejudicar a ordem coletiva.
Por tudo isso, importa reconhecer que representar papéis na vida real, é fundamental para a manutenção da ordem social... Mas é preciso ter consciência de que é a pessoa que define o valor do papel desempenhado, e não o contrário. O conhecido aforismo “O hábito faz o monge”, só é válido formalmente... na verdade é o comportamento autêntico do monge que dignifica e reforça o simbolismo do hábito.
Everaldo Lopes


[1] “Eu” que centraliza a consciência ampliada – o si mesmo.
[2] Extrato superficial da personalidade, centro na consciência clara.

3 comentários:

  1. Painho,
    O seu texto atualiza, de certa forma, um dilema clássico posto pela sociologia: como articular a possibilidade de agir a partir de interesses pessoais/individuais, com a necessidade de viver em sociedade? Como garantir a harmonia entre o exercício da liberdade individual (inerente a condição humana) e a exigência de partilhar a vida em coletividade?
    A partir desse desafio a humanidade reconheceu a necessidade de estabelecer normas, leis, limites, termos de ajustes de conduta dos papéis sociais que cada um desempenharia na vida social, considerando que esses papéis são imprescindíveis para o estabelecimento da ordem e da harmonia social. Sabemos, no entanto, que o estabelecimento desses acordos e protocolos sociais, que definem os papéis para todos os viventes, não elimina as tensões produzidas pelas contradições entre os interesses/desejos individuais e os interesses coletivos.
    É curioso pensar que cada um de nós assume uma pluralidade de papéis na vida social que nem sempre são harmoniosos entre si. Na verdade, são papéis que nos exigem uma ginástica existencial infindável para que possamos sobreviver às contradições e ambigüidades que muitas vezes o exercício desses papéis nos impõe.
    Fazendo um exercício reflexivo rápido, consigo identificar alguns papéis que hoje assumo: o de mãe, irmã, mulher, filha, educadora, gestora, amiga, cunhada, madrinha, nora, patroa, servidora do Estado, estudante de psicanálise, paciente, enfim, são tantos os papéis que assumo que fica difícil afirmar qual deles é o mais significativo para definir a minha identidade.(continua...)

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  2. É preciso reconhecer que, de fato, alguns desses papéis são exercidos por força da tradição, outros por opção, alguns pelo acaso e outros sem explicação. Assim, alguns papéis são exercidos com alegria, outros com tristeza e outros com indiferença. Mas, todos ocupam uma parte de minha vida, portanto, não podem ser desconsiderados numa análise de minha vida em sociedade.
    O fato é que cada um desses papéis que assumimos no tecido social produz um campo de expectativas e reciprocidades, sendo isto o que imprime uma dimensão eminentemente social aos papéis que desempenhamos, mesmo quando acreditamos que estamos exercendo por uma opção estritamente pessoal. Nem sempre correspondemos às expectativas sociais, assim como nem sempre os outros correspondem às nossas expectativas. Assim, a sociedade é constituída de uma plêiade de demandas e expectativas de reciprocidade, que nem sempre são correspondidas. Imagino que os conflitos sociais ganham espaço maior no tecido social quando as incorrespondências são maiores que as correspondências, quando os desencontros de expectativas são mais fortes que os encontros e as frustrações são mais intensas que as realizações.
    De fato é desconcertante quando se estabelece um “fosso existencial” entre sujeitos que não partilham uma “mútua simpatia”. E, a tendência atual, com a erosão dos valores e a insuficiência dos laços sociais em torno de projetos coletivos, é que os desencontros sejam mais intensos, e produzam mais e mais conflitos sociais. A sensação que tenho é que cresce o volume de “ações vazias sem compromisso com o bem estar do outro” em nossa sociedade. Em parte, isso se deve ao individualismo e ao enfraquecimento do sentimento de solidariedade, de pertencimento e reconhecimento entre os sujeitos sociais.
    Como resgatar o valor da pessoa humana numa conjuntura que valoriza fortemente a cultura consumista que exalta o valor dos objetos em detrimento dos sujeitos? Como recuperar a dimensão de uma “ética existencial” em detrimento de um comportamento puramente formal, descomprometido com realização existencial? Não tenho essas respostas. Mas, se admitimos que o que define o papel social é o valor de cada pessoa individualmente, temos um grande desafio pela frente; pois, temos que admitir que não se trata de mudar estruturas, mas sim, sujeitos.
    Painho, ainda preciso caminhar muito para conseguir “desdramatizar” meus conflitos existenciais, agindo sem excessos, com criatividade e inspiração inovadora. Seus textos me ajudam a pensar o quanto é precioso uma reflexão crítica em torno daquilo que parece uma determinação intransponível no campo das relações sociais. Essa constatação abre espaços para as invenções...
    Beijo da filha,
    Ruth.

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  3. Filha
    É exatamente isto que que eu tomo como conclusão, quando penso nas transformações sociais que se fazem necessárias para organizar a comunidade humana: "...não se trata de mudar estruturas, mas, sim, sujeitos." Mudança que deve acontecer por iniciativa do sujeito, ou não se efetivará jamais.Vamos voltar a este tema em outras oportunidades.
    Um beijo do pai. Everaldo

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