sábado, 18 de maio de 2019

Alegria


Alegria.

Ser alegre é um privilégio dos que conseguem viver cada momento, imbuídos de otimismo. Ou seja, viver instante a instante um vir a ser marcado pela expectativa de que prevalecerá  a melhor dentre as possibilidades que se abrem diante da vida pessoal. Por trás desta expectativa nos deparamos, porém, intimidados, com a consciência de nossa própria finitude. Há sempre um limite. A certeza deste limite deve estimular-nos a redobrar esforços para alcançar, no mais breve espaço de tempo, as realizações às quais nos propomos; mas esta certeza também pode deprimir.  Pois a morte pessoal concebida como fatalidade nos faz sentir permanentemente ameaçados tal como sentira-se o invejoso Dâmocles ao receber do Rei Dionísio o trono ambicionado[1].
O desejo fundamental do ser consciente é o da superação da própria finitude, que só conseguirá realizar na experiência de existir em plenitude, uma forma de ser problemática, em face da efemeridade inerente ao ser temporal. Embora na unidade do ser absoluto no qual tudo se integra a morte não exista, a lembrança desta é uma ameaça permanente nas elaborações da subjetividade de cada um de nós seres temporais conscientes, e se nos apresenta como uma nuvem ensombrecendo os prazeres que cada um vivencia no seu dia a dia. No fundo tudo converge no desdobramento da luta do ser consciente para conviver com seus limites temporais. Mas esta luta, fruto da consciência de nossa finitude não faz sentido uma vez que não existimos, enquanto seres históricos, fora do tempo e do espaço; para sermos, precisamos estar inseridos no universo físico e é imperioso aceitar a impermanência do ser temporal, abraçando-a conscientemente, para manter a unidade absoluta sem a qual nada existiria. Ou seja, falando por cada um de nós: todo esforço no sentido de empoderar-me se resume na luta em prol da unidade do todo que me eterniza. Em cada mudança me realizo ao contribuir para a unidade do todo. Só assim ganha sentido para o indivíduo a precariedade da comunidade humana. O grande problema do homem é a dificuldade de cada um impregnar-se com a perfeição do todo absoluto, integrando-o, sem tergiversar, sem qualquer restrição, mesmo consciente da condição momentânea de ser temporal. O universo, incluindo nossa própria existência está governado por leis eternas inerentes ao próprio Criador (Deus). Um místico dirá: Tudo faz parte do plano de Deus para fazer-nos caminhar sob sua vontade, garantindo a unidade universal.
 Compete-nos, obviamente, preencher os pressupostos no sentido de alcançar o êxito desejado na existência de cada um sem conflitar com a harmonia do todo universal. Esta atitude positiva implementada inteligentemente será a alavanca dos acontecimentos cuja evolução determinará o desfecho favorável dos projetos que alimentamos centrados numa existência plena de realizações e satisfação pessoal. Esta perspectiva  positiva  demandará que encaremos a responsabilidade de criar condições favoráveis à realização dos projetos existenciais concebidos e sustentados pela esperança de que o melhor está por vir. É salutar a predisposição para a alegria de viver assumida conscientemente na espera confiante da realização de um projeto global intensamente desejado. Como uma construção mental esta expectativa independe da realidade aparente e é assumida a partir do momento em que nos esforçamos para construir um projeto coerente,   apostando nele. Assim, mesmo que depois não venha a tornar-se realidade, no momento em que jogamos todas as fichas na realização projetada já se produzem os efeitos subjetivos esperados, antecipando-se, ou melhor, confundindo-se, na vivência existencial de cada um, com a concretização do projeto no qual se está empenhado. Nesta perspectiva o ser consciente pode superar os medos inerentes à consciência dolorosa da impermanência de tudo, suavizando a angústia existencial e ampliando, na subjetividade, os limites temporais da realidade física.
O tempo é um sumidouro de presentes que se sucedem  interminavelmente. A expectativa positiva de realizações futuras desejadas minimiza o sentimento da efemeridade do vir a ser pessoal; enfatizá-la (a expectativa) fortalecerá o ânimo para prosseguir na jornada existencial, libertando-a da armadilha da inanição provocada pelo desespero que espreita a consciência da própria contingência. Ao perder a esperança, o ser consciente mergulha num beco  sem saída, limitado à realidade incômoda de sua temporalidade. Pois viver o presente significa ultrapassá-lo, ou seja, para que haja futuro é preciso que o presente morra. Este é o ponto de partida de uma contradição insolúvel representada pelo desejo de ser eterno que colide com a efemeridade essencial inerente à própria natureza do mundo temporal. A solução seria viver o presente absoluto, ideal incompatível com a estrutura temporal da existência enquanto realização humana. Todavia, a visão pessoal positiva do vir a ser existencial, inclusive a noção de eternidade que se consegue projetar, em pensamento, vale como real na medida em que a vivenciamos plenos de fé, como algo atual ou possível. A distância entre o real vivido e o possível fica reduzida pela intensidade volitiva inerente à força do  ideal projetado e pela abordagem criativa inteligente das circunstâncias na caminhada em direção ao objetivo desejado, o que  confere a cada momento o sabor de uma realização. A consciência confiante da disposição de alcançar o objetivo colimado caracteriza a sanidade mental, até mesmo quando, sem negar a realidade cremos (temos fé) no aparentemente impossível.  Ainda que a vida se consuma, inexoravelmente em presentes fugidios, no momento de um auto de fé vale aquilo  em que cremos e não a realidade temporal aparente, passageira. Nisto reside a força de quem ama. Pois amar é mergulhar confiante na harmonia da unidade do universo na qual tudo ganha realidade na perfeição do uno indivisível, o absoluto - Deus - princípio e fim de tudo que existe, inclusive a própria consciência. A alternativa empobrecida desta vivência de totalidade é esperar que as circunstâncias fragmentárias de um vir a ser incerto nos conduza a realizações capazes, apenas, de proporcionar, episodicamente, uma alegria de viver ameaçada, todavia, pela morte como termo inevitável de tudo, inclusive do que mais amamos. Nisso consistiria, simplesmente, estar alegre, ou seja, ser envolvido por uma eventualidade feliz, essencialmente transitória, diferente de uma conquista existencial capaz de influir na maneira de lidar com a efemeridade e suas consequências, das quais participamos.
A experiência vivida de uma visão holística de nossa própria existência eliminará o preconceito da velhice, incorporando sem trauma a realidade imediata de estar morrendo minuto a minuto, na medida em que entendemos que o todo é que conta e disciplina a delimitação  das partes que o integram e esse todo é eterno.
Historicamente, almejo encontrar uma atividade que tenha repercussão comunitária, ou, que torne realidade um elo unificante entre os que nos cercam, dando sentido e (re) significando a minha própria finitude. Nesse contexto já se percebe um dilema insolúvel: envelhecer é ruim, mas não sofrer a ação do tempo é uma maldição - reporto-me ao tema do filme que vi recentemente, “A estranha história de Adaline” no qual uma filha se faz passar por vovó para não constranger a mãe que, por estranho sortilégio, não envelhecera.
Vale a pena repetir: meu envelhecimento pessoal, no contexto da unidade universal (absoluta) faz parte da própria criação; descartá-lo é uma aberração. Anulá-lo no contexto universal, para libertar-me do todo e tornar-me independente é contraditório e suicida. Logo me dou conta de que esta independência não tem consistência alguma, uma vez que não existo fora do universo, e este não dispensa toda contribuição pessoal. Para ser precisamos estar inseridos n´ele (o Universo), abraçá-lo conscientemente, para manter sua unidade absoluta sem a qual nada existiria. O grande problema humano é aceitar essa entrega sem qualquer restrição, sem tergiversar. Pois, numa linguagem mística, “Seja sorrindo, seja chorando, tudo faz parte do plano de Deus para completar a sua obra, fazendo-nos crescer” em harmonia com o todo universal, integrando-nos cada vez mais na unidade do absoluto. Esta aceitação é que garante a verdadeira alegria de viver - ser alegre.
Exemplificando, uma composição musical só nos toca profundamente quando fixa um momento significativo na vida do compositor, momento em que ele foi um significante verdadeiro. Só por isso a música conserva-se uma fonte de inspiração. Um ouvinte momentaneamente empolgado vibra de emoção na mesma frequência , remetendo-se à essência de sua natureza romântica... Ser significante e captar o significado original de uma mensagem romântica são os elementos que distinguem uma experiência existencial autêntica. Eu próprio me ponho a assuntar nos momentos em que me sinto desapaixonado ou vazio de insights originais e fico deprimido com a sensaboria  do meu vir a ser divorciado de um sentido sublime (autêntico). Na verdade, olhando minha vida em retrospecto descubro que só vivi realmente nos momentos  em que amei ou criei alguma coisa. Não é o que a gente pensa ou diz que nos faz felizes, mas o que a gente sente e momentaneamente nos aproxima da unidade absoluta, mergulhado num todo indivisível. Não importa o que a gente sente, mas o que enche cada instante a nossa mente (razão e sensibilidade) com expectativas positivas, originais, que raiam o infinito; isso sim, significa ser alegre.
Everaldo Lopes


[1] Depois de sentar-se no trono ele olhou distraidamente para cima e notou que havia uma espada presa por um fio acima dele, apontando para sua cabeça.