Alegria.
Ser alegre é um privilégio dos que conseguem viver cada momento, imbuídos
de otimismo. Ou seja, viver instante a instante um vir a ser marcado pela
expectativa de que prevalecerá a melhor
dentre as possibilidades que se abrem diante da vida pessoal. Por trás desta expectativa
nos deparamos, porém, intimidados, com a consciência de nossa própria finitude.
Há sempre um limite. A certeza deste limite deve estimular-nos a redobrar esforços
para alcançar, no mais breve espaço de tempo, as realizações às quais nos
propomos; mas esta certeza também pode deprimir. Pois a morte pessoal concebida como fatalidade
nos faz sentir permanentemente ameaçados tal como sentira-se o invejoso
Dâmocles ao receber do Rei Dionísio o trono ambicionado[1].
O desejo fundamental do ser consciente é o da superação da própria
finitude, que só conseguirá realizar na experiência de existir em plenitude,
uma forma de ser problemática, em face da efemeridade inerente ao ser temporal.
Embora na unidade do ser absoluto no qual tudo se integra a morte não exista, a
lembrança desta é uma ameaça permanente nas elaborações da subjetividade de
cada um de nós seres temporais conscientes, e se nos apresenta como uma nuvem
ensombrecendo os prazeres que cada um vivencia no seu dia a dia. No fundo tudo
converge no desdobramento da luta do ser consciente para conviver com seus
limites temporais. Mas esta luta, fruto da consciência de nossa finitude não
faz sentido uma vez que não existimos, enquanto seres históricos, fora do tempo
e do espaço; para sermos, precisamos estar inseridos no universo físico e é
imperioso aceitar a impermanência do ser temporal, abraçando-a conscientemente,
para manter a unidade absoluta sem a qual nada existiria. Ou seja, falando por
cada um de nós: todo esforço no sentido de empoderar-me se resume na luta em
prol da unidade do todo que me eterniza. Em cada mudança me realizo ao
contribuir para a unidade do todo. Só assim ganha sentido para o indivíduo a
precariedade da comunidade humana. O grande problema do homem é a dificuldade
de cada um impregnar-se com a perfeição do todo absoluto, integrando-o, sem
tergiversar, sem qualquer restrição, mesmo consciente da condição momentânea de
ser temporal. O universo, incluindo nossa própria existência está governado por
leis eternas inerentes ao próprio Criador (Deus). Um místico dirá: Tudo faz
parte do plano de Deus para fazer-nos caminhar sob sua vontade, garantindo a
unidade universal.
Compete-nos, obviamente, preencher
os pressupostos no sentido de alcançar o êxito desejado na existência de cada
um sem conflitar com a harmonia do todo universal. Esta atitude positiva
implementada inteligentemente será a alavanca dos acontecimentos cuja evolução determinará
o desfecho favorável dos projetos que alimentamos centrados numa existência
plena de realizações e satisfação pessoal. Esta perspectiva positiva
demandará que encaremos a responsabilidade de criar condições favoráveis
à realização dos projetos existenciais concebidos e sustentados pela esperança de
que o melhor está por vir. É salutar a predisposição para a alegria de viver
assumida conscientemente na espera confiante da realização de um projeto global
intensamente desejado. Como uma construção mental esta expectativa independe da
realidade aparente e é assumida a partir do momento em que nos esforçamos para
construir um projeto coerente, apostando nele. Assim, mesmo que depois não
venha a tornar-se realidade, no momento em que jogamos todas as fichas na
realização projetada já se produzem os efeitos subjetivos esperados, antecipando-se,
ou melhor, confundindo-se, na vivência existencial de cada um, com a
concretização do projeto no qual se está empenhado. Nesta perspectiva o ser
consciente pode superar os medos inerentes à consciência dolorosa da impermanência
de tudo, suavizando a angústia existencial e ampliando, na subjetividade, os
limites temporais da realidade física.
O tempo é um sumidouro de presentes que se sucedem interminavelmente. A expectativa positiva de
realizações futuras desejadas minimiza o sentimento da efemeridade do vir a ser
pessoal; enfatizá-la (a expectativa) fortalecerá o ânimo para prosseguir na
jornada existencial, libertando-a da armadilha da inanição provocada pelo
desespero que espreita a consciência da própria contingência. Ao perder a
esperança, o ser consciente mergulha num beco sem saída, limitado à realidade incômoda de
sua temporalidade. Pois viver o presente significa ultrapassá-lo, ou seja, para
que haja futuro é preciso que o presente morra. Este é o ponto de partida de
uma contradição insolúvel representada pelo desejo de ser eterno que colide com
a efemeridade essencial inerente à própria natureza do mundo temporal. A
solução seria viver o presente absoluto, ideal incompatível com a estrutura
temporal da existência enquanto realização humana. Todavia, a visão pessoal positiva
do vir a ser existencial, inclusive a noção de eternidade que se consegue
projetar, em pensamento, vale como real na medida em que a vivenciamos plenos
de fé, como algo atual ou possível. A distância entre o real vivido e o possível
fica reduzida pela intensidade volitiva inerente à força do ideal projetado e pela abordagem criativa
inteligente das circunstâncias na caminhada em direção ao objetivo desejado, o
que confere a cada momento o sabor de
uma realização. A consciência confiante da disposição de alcançar o objetivo
colimado caracteriza a sanidade mental, até mesmo quando, sem negar a realidade
cremos (temos fé) no aparentemente impossível. Ainda que a vida se consuma, inexoravelmente
em presentes fugidios, no momento de um auto de fé vale aquilo em que cremos e não a realidade temporal
aparente, passageira. Nisto reside a força de quem ama. Pois amar é mergulhar
confiante na harmonia da unidade do universo na qual tudo ganha realidade na
perfeição do uno indivisível, o absoluto - Deus - princípio e fim de tudo que
existe, inclusive a própria consciência. A alternativa empobrecida desta
vivência de totalidade é esperar que as circunstâncias fragmentárias de um vir
a ser incerto nos conduza a realizações capazes, apenas, de proporcionar,
episodicamente, uma alegria de viver ameaçada, todavia, pela morte como termo
inevitável de tudo, inclusive do que mais amamos. Nisso consistiria,
simplesmente, estar alegre, ou seja, ser envolvido por uma eventualidade feliz,
essencialmente transitória, diferente de uma conquista existencial capaz de
influir na maneira de lidar com a efemeridade e suas consequências, das quais
participamos.
A experiência vivida de uma visão holística de nossa própria existência
eliminará o preconceito da velhice, incorporando sem trauma a realidade imediata
de estar morrendo minuto a minuto, na medida em que entendemos que o todo é que
conta e disciplina a delimitação das
partes que o integram e esse todo é eterno.
Historicamente, almejo encontrar uma atividade que tenha repercussão
comunitária, ou, que torne realidade um elo unificante entre os que nos cercam,
dando sentido e (re) significando a minha própria finitude. Nesse contexto já
se percebe um dilema insolúvel: envelhecer é ruim, mas não sofrer a ação do
tempo é uma maldição - reporto-me ao tema do filme que vi recentemente, “A estranha
história de Adaline” no qual uma filha se faz passar por vovó para não
constranger a mãe que, por estranho sortilégio, não envelhecera.
Vale a pena repetir: meu envelhecimento pessoal, no contexto da unidade
universal (absoluta) faz parte da própria criação; descartá-lo é uma aberração.
Anulá-lo no contexto universal, para libertar-me do todo e tornar-me
independente é contraditório e suicida. Logo me dou conta de que esta
independência não tem consistência alguma, uma vez que não existo fora do
universo, e este não dispensa toda contribuição pessoal. Para ser precisamos estar
inseridos n´ele (o Universo), abraçá-lo conscientemente, para manter sua
unidade absoluta sem a qual nada existiria. O grande problema humano é aceitar
essa entrega sem qualquer restrição, sem tergiversar. Pois, numa linguagem
mística, “Seja sorrindo, seja chorando, tudo faz parte do plano de Deus para completar
a sua obra, fazendo-nos crescer” em harmonia com o todo universal,
integrando-nos cada vez mais na unidade do absoluto. Esta aceitação é que garante
a verdadeira alegria de viver - ser alegre.
Exemplificando, uma composição musical só nos toca profundamente quando
fixa um momento significativo na vida do compositor, momento em que ele foi um significante
verdadeiro. Só por isso a música conserva-se uma fonte de inspiração. Um
ouvinte momentaneamente empolgado vibra de emoção na mesma frequência , remetendo-se
à essência de sua natureza romântica... Ser significante e captar o significado
original de uma mensagem romântica são os elementos que distinguem uma experiência
existencial autêntica. Eu próprio me ponho a assuntar nos momentos em que me
sinto desapaixonado ou vazio de insights originais e fico deprimido com a
sensaboria do meu vir a ser divorciado
de um sentido sublime (autêntico). Na verdade, olhando minha vida em
retrospecto descubro que só vivi realmente nos momentos em que amei ou criei alguma coisa. Não é o
que a gente pensa ou diz que nos faz felizes, mas o que a gente sente e
momentaneamente nos aproxima da unidade
absoluta, mergulhado num todo indivisível. Não importa o que a gente sente, mas
o que enche cada instante a nossa mente (razão e sensibilidade) com expectativas
positivas, originais, que raiam o infinito; isso sim, significa ser alegre.
Everaldo Lopes
[1]
Depois de sentar-se no trono ele olhou distraidamente para cima e notou que
havia uma espada presa por um fio acima dele, apontando para sua cabeça.